Título: Para Morales, a coca é sagrada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2006, Internacional, p. A17

Evo Morales, o novo presidente da Bolívia, não gosta que lhe perguntem sobre o narcotráfico. Tampouco lhe agrada ser questionado sobre a admiração que diz ter pelo ditador cubano, Fidel Castro, nem sobre sua amizade com o polêmico presidente da Venezuela, Hugo Chávez. No entanto, fui à Bolívia exatamente para isso: conhecer o verdadeiro Evo Morales.

O dia do encontro com este líder cocaleiro mudou várias vezes - "é que Evo continua em Cochabamba", "é que ele tem uma reunião no Hotel Radisson", "é por razões de segurança" -, até que finalmente nos encontramos ao meio-dia na casa onde ele costumava dormir, antes de ser presidente, na capital boliviana. Morales vestia a mesma chompa (suéter) vermelha com faixas brancas e azuis com que apareceu à exaustão em sua recente viagem pela Europa, Ásia e África do Sul. Ele não usa gravata porque, segundo diz, "as maiorias nunca usam gravata".

Já em suas primeiras palavras ele deixou claro que se sente mais à vontade comunicando-se em sua língua nativa, aimará, do que em espanhol. Mas isso não o impediu de dizer, categoricamente, que "admira e respeita" Fidel (que governa Cuba desde o ano em que Morales nasceu, 1959). "Lá existe democracia", disse Morales, referindo-se ao regime castrista. "Para mim, (Fidel) é um homem democrático que defende a vida, pensa no ser humano. Se para o senhor ele é um ditador, é problema seu, não meu." Mas quando lhe perguntei se não era hipocrisia querer a democracia para os bolivianos - que lhes custou tanto trabalho desde 1982 - e não para os cubanos, a conversa se tornou perigosamente pessoal.

"Peço-lhe muito respeito, não me chame de hipócrita", censurou-me. "A hipocrisia vem somente de suas perguntas." Tentei, sem muito êxito, explicar-lhe o que eu fazia: "Meu trabalho como jornalista, com todo o respeito, senhor Morales, é o de fazer perguntas." O clima, de repente, esfriara. Ele estava aborrecido e isto era evidente. Morales se revirou na cadeira. Ouvi ao fundo as queixas de sua assessora de imprensa, mas continuei.

Quando lhe disse que o exílio cubano poderia comprovar a morte de milhares de pessoas nas mãos de Fidel Castro, Morales se lançou contra o presidente dos EUA, George W. Bush: "Não vejo tanta morte (em Cuba) quanto a provocada pelos EUA e Bush no Iraque."

"Quantas bases militares Fidel tem na América Latina ou no mundo?", perguntou-se Morales. "E Bush, diga-me, quantas bases militares ele tem no mundo, onde comete massacres a cada dia?"

"Para o senhor, Bush é um assassino?", perguntei. "Isto é o povo que dirá", respondeu, evitando falar em primeira pessoa. "É uma intervenção militar selvagem. O povo dirá o que é isso." Quanto tentei mais uma vez obter sua opinião pessoal, ele me respondeu incomodado. "Não insista nisso." Pouco depois, acrescentou: "O que o senhor está provocando é um confronto internacional e não vou permitir isso." Tentei perguntar sobre sua aliança com Hugo Chávez - Morales chama Cuba, Venezuela e Bolívia de "eixo do bem" -, mas ele se recusou a responder, dizendo que a partir daquele momento só falaria de temas relacionados à Bolívia. A conversa não ia bem, então passei ao tema do narcotráfico.

Na Bolívia, há cerca de 30 mil hectares dedicados ao cultivo da folha de coca. Uma parte, certamente, destina-se ao consumo tradicional dos bolivianos, que usam a folha para fazer chá e medicamentos. Mas outra parte importante vai para os traficantes, que transformam a folha na pasta usada para a produção da cocaína.

"O senhor pensa em erradicar os cultivos de folha de coca na Bolívia?", perguntei. "Não", respondeu ele, sem hesitar. "A coca é sagrada. A coca não se erradica. Sim, é preciso erradicar o narcotráfico, erradicar a demanda e erradicar a cocaína." No entanto, quando lhe pedi detalhes sobre seus planos para evitar que o excesso de folha de coca seja utilizado pelos traficantes, Morales deu a entrevista por concluída.

"Muito obrigado, acabou o tempo", disse-me, levantando da cadeira e arrancando o microfone. Olhei para meu relógio e vi que conversáramos apenas 6 minutos e 40 segundos, muito menos que os 15 minutos prometidos.

"Não gostou das perguntas?", sugeri. "Não, não é isso", balbuciou Morales. Enquanto isso, sua assessora de imprensa me pedia que me calasse e fosse embora: "Companheiro, por favor, companheiro." Morales olhava para outro lado quando saí da sala.

Admito que esta não é a melhor maneira de conhecer um novo presidente. Talvez minha visão de Morales a partir do exterior, muito mais estereotipada, não coincidisse com a percepção interna de que, enfim, a grande maioria dos bolivianos tem um mandatário indígena que se parece com eles e promete defendê-los. Garantiram-me que é preciso esperar pelas ações de Morales e não dar tanta atenção ao que ele diz. De início, ele já reduziu o salário presidencial à metade: ganhará o equivalente a US$ 1.875 por mês, tornando-se assim um dos presidentes mais mal pagos do mundo.

Apesar disso, Morales terá de fazer muito mais que cortar seu pagamento para beneficiar os quase 9 milhões de habitantes da nação mais pobre da América do Sul. Seus planos de nacionalizar o gás natural não são muito claros e o pedido boliviano de um crédito americano de US$ 598 milhões ainda está pendente. Mas os bolivianos esperam resultados - e bons empregos - logo. A Bolívia é famosa pela impaciência política; teve cinco presidentes nos últimos três anos.

Mais que da esperança de um futuro melhor, Morales é produto da desesperança deixada por um passado de corrupção, discriminação racial, abusos... e dos erros da política americana na região. Três anos depois que o embaixador americano, Manuel Rocha, pediu aos bolivianos que não votassem em Morales, 54% dos eleitores fizeram exatamente isso em dezembro. Morales disse que seria um "pesadelo" para os EUA, e já é. O que Che Guevara não conseguiu ao chegar à Bolívia, em 1966, Morales conseguiu, com votos e sem balas, quatro décadas depois.

Morales tem algo da intransigência da velha esquerda latino-americana - aí está, por exemplo, seu apoio à ditadura cubana - e algo do pragmatismo da nova esquerda que aprendeu a ganhar eleições do Chile ao México. Se minha brevíssima entrevista com Morales é um sinal precoce do rumo de sua presidência, o principal perigo de seu governo é que ele sofra de vertigem política, deixe o poder subir-lhe à cabeça, faça malabarismos com a frágil democracia boliviana e isole a Bolívia da globalização. Esta nação, sem saída para o mar, aposta em Morales sua saída para o futuro.