Título: Manobra define eleição no Haiti
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2006, Internacional, p. A12

Interpretação de lei eleitoral distribuiu votos brancos entre candidatos e elevou votação de Préval para além dos 50%

Milhares de haitianos madrugaram para comemorar a vitória de René Préval, do movimento Esperança, proclamado presidente eleito, com 51,15% dos votos, depois de oito dias de protestos nas ruas e denúncias de fraude nas eleições do dia 7. Uma resolução do Conselho Eleitoral Provisório (CEP), com data de 15 de fevereiro, anunciou pela TV, por volta das 2 horas da madrugada, que Préval ultrapassou a maioria absoluta - metade mais 1 - depois de contados os votos em branco, que foram distribuídos, proporcionalmente, entre os 33 candidatos. Ao meio-dia, uma multidão dançava e cantava diante do palácio presidencial, no Campo de Marte, sob os olhos vigilantes, mas agora tranqüilos, dos soldados da Força de Paz das Nações Unidas.

O esforço para contornar a crise provocada pela contestação dos resultados da eleição, que até a véspera davam 48,76% a Préval e 11,83% ao segundo colocado, Leslie François Manigat, exigiu horas de ginástica diplomática e jurídica em Porto Príncipe, até que se chegasse a uma saída legal.

O quinteto formado pelos embaixadores do Brasil, Canadá, Chile, EUA e França - o grupo dos países amigos - partiu em busca de uma interpretação digerível do decreto eleitoral que determinou as regras para a escolha do presidente da república, depois de tentar, em vão, que Manigat renunciasse à candidatura e, portanto, dispensasse o segundo turno.

Quem achou a saída foi o embaixador canadense. Ele foi buscar na Constituição da Bélgica um paralelo capaz de derrubar o impasse criado no Haiti, quando Préval se declarou vencedor, denunciando "fraudes maciças ou erros grosseiros" nas urnas. Sugeriu-se que, se o decreto eleitoral previa a contagem dos votos em branco sem determinar o que fazer com eles, o CEP poderia distribuí-los entre os candidatos. Aceita a sugestão, Préval pulou dos 48,76% de um placar paralisado desde o meio-dia de segunda-feira para os 51,15% que lhe garantem a vitória.

Manigat, de 75 anos, ex-presidente como Préval, embora por pouco mais de um ano, reagiu à manobra jurídica e exigiu que, conforme prevê a lei, se faça o segundo turno. "Não podemos aceitar essa decisão, mas como democratas seremos fiéis a nossa dignidade e à legalidade republicana", declarou o candidato da União dos Democratas Nacional-Progressistas.

Manigat e qualquer outro dos competidores têm 72 horas de prazo para recorrer da resolução, mas sem chance de êxito: quem vai julgar o recurso são os mesmos conselheiros do CEP que proclamaram a vitória de Préval.

A comitiva diplomática que foi procurar Manigat para lhe sugerir que reconhecesse a vitória de Préval e desistisse do segundo turno encontrou-o inflexível. Vestido de branco, sentado numa poltrona de sua sala, ele recebeu os embaixadores com respeito e cortesia, mas não discutiu a proposta.

Anunciada a decisão do CEP, o embaixador do Brasil em Porto Príncipe, Paulo Cordeiro de Andrade Pinto foi cumprimentar Préval em sua residência. "Sugeri a ele que iniciasse logo o diálogo com a oposição para facilitar a conciliação e a reconstrução do país", informou o embaixador. O chanceler Celso Amorim acabara de ligar, para dizer exatamente a mesma coisa (ler ao lado).

Além dos representantes dos países amigos, participaram ativamente das negociações para acabar com o impasse eleitoral o embaixador Juan Gabriel Valdés, chefe da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) e o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, ambos chilenos.

Porto Príncipe, que nos últimos três dias estava intransitável, com passeatas de protesto e barricadas nas ruas, teve uma quinta-feira tranqüila. As tropas da Minustah, no entanto, reforçaram a segurança. O Batalhão Haiti, que tem 1.200 brasileiros na capital, aumentou de 17 para 32 os postos de controle, com o apoio de soldados e blindados do Uruguai e de Sri Lanka. O aeroporto, porém, ainda não voltou ao ritmo normal. A American Airlines só retomará amanhã seus cinco vôos diários para os Estados Unidos.