Título: Amanhã, dia decisivo para o Irã
Autor: Maria Teresa de Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Internacional, p. A15

A crise envolvendo o programa nuclear iraniano já dura quase quatro anos, com trocas ácidas de acusações entre a Casa Branca e o regime dos aiatolás, fazendo aumentar o temor de um novo conflito no Oriente Médio. Amanhã, começa um capítulo importante desse caso. Se um acordo de última hora não for fechado, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o órgão da ONU que promove o uso pacífico da energia nuclear, vai dar a palavra final sobre o programa iraniano. O esperado é que a AIEA encaminhe o Irã ao Conselho de Segurança, a instância máxima da ONU, com poder de impor sanções econômicas e militares.

A previsão é que o Conselho se reúna já no próximo dia 13 para analisar o que fazer e aprove uma resolução de advertência ao Irã. O que está em jogo não é a existência do programa nuclear iraniano. Como membro da AIEA e signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), o Irã tem o direito de dominar todo o ciclo da energia nuclear para fins pacíficos, destinados ao uso, por exemplo, em medicina ou produção de energia elétrica. Em tese, é o mesmo caso do Brasil, que é membro da AIEA e aderiu ao TNP.

A diferença em relação ao Brasil e outros signatários do TNP, no entanto, é que o Irã perdeu a credibilidade da comunidade internacional. Pelo fato de ter assinado o TNP - pacto contra a proliferação de armas atômicas - o Irã não pode fabricar armas nucleares e tem de manter suas instalações transparentes e sob estrita vigilância da AIEA. O detalhe é que o país não cumpriu seu compromisso com o tratado.

Foi em agosto de 2002 que surgiram fortes suspeitas de que o governo iraniano ocultava informações e instalações. Primeiro, um grupo de dissidentes do regime islâmico, exilados no Ocidente, anunciou que o governo iraniano mantinha uma usina secreta de enriquecimento de urânio em Natanz, no centro do país, e uma planta de água pesada em Arak, no oeste. Quatro meses mais tarde, uma TV americana mostrou imagens de satélite das duas unidades, levando o Irã a concordar com visitas de inspetores da AIEA ao local.

SOB SUSPEITA

Em 2003, ficou comprovado que o país escondera por mais de 18 anos instalações nucleares, o que levantou suspeitas de que possuía um programa paralelo para fabricação de armas atômicas.

Diante das evidências, a AIEA pressionou o Irã a congelar as atividades de enriquecimento de urânio, justamente porque esse processo tanto pode conduzir à produção de energia elétrica - que o país alega ser seu objetivo -, como ao combustível usado em bombas.

O urânio enriquecido (ou purificado) num nível baixo é adequado para reatores de usinas de produção de energia elétrica. Para se transformar em arma, tem de ser enriquecido em níveis elevados, próximo dos 95%, o que requer um grande número de centrífugas.

Os peritos internacionais concordam em que atualmente o Irã está longe de poder fabricar uma arma nuclear. Está ainda na fase de desenvolvimento do processo de enriquecimento de urânio. Levaria anos para dominar o processo. As estimativas variam muito. Avalia-se que seriam pelo menos cinco anos.

EIXO DO MAL

De início, a maior pressão veio dos EUA, que romperam relações com o Irã depois da Revolução Islâmica (1979) e o acusam de patrocinar o terror internacional, pelo fato de dar apoio ao grupo xiita libanês Hezbollah e ao palestino Hamas, entre outros que os americanos classificam como organizações terroristas.

Logo após sua posse, em janeiro de 2001, o presidente dos EUA, George W. Bush, colocou o Irã no que chamou de "eixo do mal", ao lado do Iraque e da Coréia do Norte. A guerra de Bush ao terror e a descoberta das instalações secretas de Natanz e Arak levaram o presidente americano a aumentar a pressão sobre Teerã. Na época, o Irã era presidido por Mohamad Khatami, um reformista que procurava melhorar as relações do país com o Ocidente, depois de anos de afastamento após a Revolução Islâmica, que transformou o regime de governo em uma teocracia comandada pelos aiatolás. Apesar de sua política pró-reformas para democratização do regime, na questão nuclear Khatami se alinhava com o líder máximo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, um ultraconservador.

Khatami insistiu que o Irã tinha como único objetivo produzir seu próprio combustível nuclear para uso pacífico. Para dirimir as dúvidas a esse respeito, o Irã concordou, em outubro de 2003, em assinar um protocolo adicional ao TNP, pelo qual aceitou inspeções mais amplas, comunicadas de última hora, em todas as suas instalações. Numa reunião com diplomatas da Alemanha, França e Grã-Bretanha (representando a União Européia), os iranianos se comprometeram a cooperar integralmente com a AIEA.

Isso não foi suficiente para dissipar a crise porque em fevereiro de 2004 surgiram evidências de que o pai da bomba atômica paquistanês, o cientista Abdul Qadir Khan, entregara ao Irã tecnologia e informações. Herói no Paquistão, Khan caiu em desgraça quando se descobriu que ele contribuíra para a proliferação de armas nucleares ao fornecer clandestinamente seus segredos à Coréia do Norte, Líbia e Irã .

Em setembro de 2004, o então secretário americano de Estado, Colin Powell, pediu que a AIEA encaminhasse o Irã ao Conselho de Segurança, para a aplicação de sanções pela "ameaça que seu programa nuclear representava". A intervenção da União Européia evitou a escalada da crise.

CONGELAMENTO

Temendo ser encaminhado ao Conselho de Segurança, o Irã prometeu aos europeus suspender todas as atividades relacionadas ao enriquecimento de urânio. Deixou claro, contudo, que não abandonava seu direito de dominar essa tecnologia. Tratava-se apenas de uma interrupção temporária enquanto os peritos da AIEA checassem por alguns meses as usinas e outras dependências. Já os europeus se mostraram confiantes em que o país concordaria em congelar permanentemente as atividades, em troca de acordos comerciais, de cooperação tecnológica e outros incentivos econômicos.

No ano passado, as negociações entre o Irã e a UE não avançaram e apareceram novos documentos e indicações de que o país não cooperava plenamente com a AIEA. Foi então que ganhou força o jogo de ameaças. De um lado, o Irã avisava que ia retomar o processo de conversão de minério de urânio num gás usado em centrífugas. De outro lado, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, ameaçava recorrer ao Conselho de Segurança.

LINHA-DURA

O quadro se tornou mais complexo - e menos promissor - com a vitória, em junho de 2005, do ultraconservador Mahmud Ahmadinejad nas eleições presidenciais iranianas. Ahmadinejad venceu com um discurso que retoma os princípios originais da Revolução Islâmica, centrado no confronto com o Ocidente - em particular os EUA - e Israel. Na questão nuclear, o novo presidente explora o sentimento nacionalista da população e acusa a AIEA de estar politicamente motivada contra o Irã. Ele enfatiza, porém, a finalidade pacífica do programa nuclear. Diz que a pressão internacional é injusta. Alega que não há provas de que o Irã produziu armas atômica enquanto, por outro lado, Índia, Paquistão e Israel, países que possuem armas atômicas e não são signatários do TNP, não estão sob nenhuma pressão. Mas as declarações anti-semitas de Ahmadinejad não contribuem para melhorar a imagem internacional do Irã. Ele põe em dúvida o Holocausto e diz que Israel deveria ser varrido do mapa.

O ponto de virada na atual crise se deu no início de janeiro deste ano, quando o Irã informou ter retomado as pesquisas para enriquecimento de urânio, atraindo protestos da comunidade internacional. Desta vez, o Irã não conseguiu contar com o freio da Rússia e da China, países com direito a veto no Conselho de Segurança e fortes laços econômicos com os iranianos (a Rússia constrói um reator nuclear no Irã e a China compra gás e petróleo).

Mas tanto russos como chineses também temem um Irã com armas nucleares. Por isso, numa reunião da AIEA, convocada em caráter de emergência, no dia 4 de fevereiro, Rússia e China aprovaram uma resolução pedindo o encaminhamento do Irã ao Conselho de Segurança. A resolução teve o apoio de 27 dos 35 países do conselho diretor da agência, incluindo o Brasil. Apenas Venezuela, Cuba e Síria - países às turras com os EUA - votaram contra.

Ficou decidido, então, que o Conselho de Segurança só se reuniria depois do encontro regular da AIEA, marcado para amanhã, em Viena, na qual Mohamed Baradei, diretor da agência, apresentará seu relatório. Até hoje, o Irã não se mostra disposto a aceitar a proposta da Rússia - de, em troca do abandono de seu projeto de enriquecer urânio, produzir esse combustível em usinas russas. Se o Irã passasse a importar o combustível da Rússia, a comunidade internacional teria condições de supervisionar exatamente o grau de purificação e as quantidades usadas pelas usinas iranianas. Diante da irredutibilidade do Irã, a grande incógnita é o que o Conselho de Segurança fará. Rússia e China já indicaram que não apoiarão sanções econômicas. A maioria dos que arriscam uma previsão diz que na reunião do Conselho será aprovada apenas uma advertência. Numa segunda etapa, viria uma resolução mais forte, com restrições financeiras ou para viagens de líderes iranianos ao exterior.