Título: O risco da impunidade
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Pela diferença de um voto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de conceder a homicidas, estupradores, seqüestradores e traficantes de drogas o direito ao regime de progressão da pena, em caso de bom comportamento, permitindo-lhes passar do regime fechado para o semi-aberto, foi, no mínimo, arriscada.

O debate teve início há dois anos, quando o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sugeriu a revisão da Lei dos Crimes Hediondos, classificando-a como "receituário de uma vocalização conservadora em matéria de repressão à criminalidade". O recado do ministro, claramente ideológico, é um escárnio. E a sociedade brasileira, sofrida e desamparada, já começa a se manifestar. Num protesto impressionante contra a farra da impunidade, mais de 1 milhão de assinaturas desabaram sobre o Congresso Nacional. Trata-se de um grito de revolta contra aqueles que teimam em "glamourizar" a crueldade.

A decisão do STF pode, de fato, devolver às ruas estupradores, traficantes de drogas, assassinos e seqüestradores. A medida, embora minimizada pelas autoridades, é surpreendente e surrealista. Hoje, mais da metade dos presos cumpre pena por crimes hediondos. O tráfico de drogas é, de longe, o primeiro colocado. E está crescendo em progressão geométrica. Com pena mínima de três anos de prisão, o tráfico de drogas poderá ser punido com pena de prestação de serviços à comunidade. As metrópoles brasileiras vivem em clima de guerra civil. Por isso, a decisão do STF manifesta notável autismo. A foto estampada na capa do jornal Folha de S.Paulo de quinta-feira é um dramático atestado da morte da autoridade: soldados do Exército patrulhavam a Favela de Manguinhos (Rio), enquanto garotos faziam gestos obscenos. Vale um editorial.

O ministro da Justiça, em artigo publicado no Estado (24/8/2004), disse que, por ter sido escrita "sob a emoção da violência", a Lei dos Crimes Hediondos satisfaz os anseios de segurança da sociedade, mas não coíbe a criminalidade. "(...) A lei é o mais claro exemplo (...) da legislação do pânico, ou seja, (...) que é feita a partir de casos de grande repercussão", escreveu ele, após lembrar que foi por causa da mobilização da escritora Glória Perez, cuja filha foi assassinada por um ator de novela, que o Congresso incluiu o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. "Não é correto que apenas casos célebres (...) possam definir ou se tornarem parâmetros para a política criminal do Estado", sublinhou.

A sociedade está em pânico, sim. Mas não se trata de uma paranóia. O cidadão honrado, que paga impostos exorbitantes, é refém do banditismo e da inoperância do governo. Quando Fernandinho Beira-Mar, um delinqüente sob custódia federal, fazia gato e sapato das autoridades subordinadas ao Ministério da Justiça, Thomaz Bastos pediu socorro ao governador Geraldo Alckmin. O bandido foi transferido para um dos presídios de segurança máxima do governo de São Paulo. O ministro garantiu que em poucos meses seria construído um presídio federal e, então, providenciaria a transferência de Beira-Mar. O calendário virou. E não havia nem projeto do presídio. Há alguns meses, finalmente, Beira-Mar deixou São Paulo.

Segundo Thomaz Bastos, casos célebres não devem definir parâmetros para a política criminal do Estado. Tal afirmação é o resultado acabado do clima rarefeito que se respira na Ilha da Fantasia. Sua Excelência, cercado de segurança e conforto, perdeu conexão com o mundo real. Afinal, o caso Glória Perez é uma gota d'água num oceano cotidiano de homicídios, seqüestros, tráfico de drogas, etc. Na verdade, o governo brasileiro está renunciando a uma das missões essenciais do Estado: a segurança da população. A verdade, caro leitor, é uma só: construir cadeia custa dinheiro e não dá voto. Por isso, soltem-se os bandidos. O governo pretende, de fato, promover o esvaziamento das prisões, a fim de contornar as dramáticas conseqüências da superpopulação e, ao mesmo tempo, sair do foco dos holofotes dos organismos internacionais que, reiteradamente, têm denunciado a desumanidade reinante no sistema carcerário brasileiro.

Agora, pressionado pelo clamor popular, o presidente Lula deve enviar ao Congresso nos próximos dias um projeto para dificultar a liberação de presos condenados por crimes hediondos. O projeto, que está sendo preparado pela equipe do ministro da Justiça, estabelece prazos maiores para que presos condenados peçam liberdade condicional ou outros benefícios de progressão de regime. Atualmente, qualquer condenado que esteja preso pode pedir progressão do regime após cumprir um sexto da pena. Quer dizer, um criminoso sentenciado a 18 anos de prisão, punição só aplicada em casos gravíssimos, pode pleitear o regime semi-aberto depois de três anos de cadeia. A regra se tornou geral depois da temerária decisão do STF, ampliando o benefício aos condenados por crimes hediondos. Com a decisão do STF, o governo resolveu estabelecer novas regras para restringir os benefícios. É uma resposta às reivindicações que uma comissão de familiares de vítimas da violência entregou a Bastos e aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP).

O governo e o Congresso ainda podem remendar esse lamentável episódio. Trata-se de regular de forma bastante rígida a concessão de benefícios para quem cometeu crimes hediondos. Pode-se, por exemplo, aumentar significativamente o período obrigatório de reclusão. O que não se pode é transmitir à sociedade a convicção de que a impunidade foi aprovada pela mais alta instância judicial do País.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia. E-mail: