Título: Filosofia de piratas
Autor: Sandra Cavalcanti
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Sempre impliquei com governantes que chegam ao poder e acham que estão descobrindo o Brasil. Não percebem que assumir a administração de um país é como fazer parte de uma equipe na disputa dos 400 metros com bastão.

São quatro etapas de cem metros, cada uma por conta de um atleta. Aos cem metros, o primeiro atleta da equipe deve passar o bastão para o segundo. Correm juntos por alguns segundos, para que, na entrega, o bastão não caia.

O governo de agora recebeu o bastão do governo anterior. E deve estar preparado para entregá-lo a quem vem depois.

Quando assumiu o governo do Estado da Guanabara, em 1961, Carlos Lacerda se assustou com a situação do Estádio do Maracanã. Construído às pressas para a Copa de 1950, já estava quase em ruínas. Para a sua recuperação o governador Lacerda convocou o engenheiro Emílio Ibrahim. Os trabalhos duraram dois anos, principalmente porque foi preciso refazer as estruturas afetadas pelo descaso e pelas chuvas.

Na entrega da obra, Carlos Lacerda surpreendeu amigos e correligionários enviando um convite oficial ao ex-prefeito Mendes de Morais. A incompreensão foi geral. Não fora daquele general a ousadia de contratar pelegos para darem uma surra em Lacerda, na porta da Rádio Mayrink Veiga? Não era ele um dos suspeitos mandantes do atentado da Rua Toneleros, juntamente com o Beijo Vargas? Carlos Lacerda assim se explicava: "Ele pode até não gostar de mim, e ter feito tudo o que fez, mas acontece que foi ele que construiu o Maracanã. Não posso omitir este fato. Não vou assumir para mim uma obra que não é minha."

Em 1966 vivemos um episódio exatamente o oposto. Três meses após a posse do novo governador do Estado da Guanabara, entrou em funcionamento a mais importante obra de captação e distribuição de água de que se tem notícia no mundo, a Adutora do Guandu. Esse gigantesco projeto, elaborado e executado durante o governo de Carlos Lacerda, só conseguiu ficar pronto nos primeiros três meses do governo do seu sucessor, atrasado por manobras mesquinhas do governo federal. Graças à Adutora do Guandu, os cariocas e fluminenses têm água farta até hoje. Pois bem, para a festa de inauguração, com a presença de autoridades federais, estaduais, municipais, estrangeiras, eclesiásticas, artísticas e que tais, Carlos Lacerda não foi convidado. Nem sequer foi citado. Esse desapreço sistemático pelos esforços de governos anteriores revela o atraso da mentalidade de nossos governantes e faz a festa dos áulicos e bajuladores.

Tem havido exceções. Sarney, por exemplo, nunca se apropriou da legislação para pessoas portadoras de deficiências, que, nascida do esforço de dezenas de entidades privadas e da atuação de Marco Maciel na pasta da Educação, foi votada em seu governo. FHC teve a hombridade de não se apropriar do Plano Real. Concebido por um grupo de economistas da PUC, o plano não teria sido posto em prática sem a visão e a coragem do presidente Itamar Franco.

Aprendi, nestes anos de vida pública, que a maioria dos políticos não cultiva o hábito de respeitar e honrar o esforço dos outros. Essa dura realidade me leva a repetir sempre que o principal atributo de um governante deve ser a humildade.

No lava-pés da Semana Santa, Cristo nos ensina essa noção. Um líder presta serviço. Essa é a humildade verdadeira do chefe. A humildade apregoada sempre cheira a farisaísmo. A humildade real se revela no reconhecimento da capacidade alheia, na gratidão pelo que foi feito pelos outros, no espírito de serviço, sem invejas e sem rancores.

Quem chega ao poder e acha que tudo está na estaca zero ou é ignorante ou arrogante. Desconhece o que anda ao seu redor, aqui e lá fora, e revela incomensurável soberba.

Esse refrão que o Lula repete a todo momento, "nunca, antes de mim, etc.", levado à analise, seria muito comprometedor! Essa mania de achar que a História do País está começando com ele, isso é muito grave. Já foi até definido como Complexo de Pedro Álvares Cabral...

Que injustiça com o nosso bom Cabral! O excelente navegador português, ao contrário do que os compêndios positivistas da Primeira República faziam crer, sabia muito bem o que estava fazendo. Não dependia de acasos nem cometia erros. Usou mapas de seus antecessores e sempre soube que a chegada àquelas terras não era um descobrimento. Cumpriu, zelosamente, mais uma etapa nos grandes feitos da navegação portuguesa. Sabia que estava demarcando um território que, visitado por muitos e por muitos cobiçado, pertencia ao Reino de Portugal, pelo Tratado de Tordesilhas. Foi um grande marinheiro, não um pirata. Não comandou para pilhar. Não se achava o Primeiro do Mundo. Nada tem que ver com o caso de Lula. Esse não tem alma para entender que só está colhendo o que outros plantaram antes dele.

Como observa Eduardo Giannetti, o governante, como todo mundo, é obrigado a fazer uma escolha intertemporal. Antecipar ou retardar? Importar valores do futuro para desfrute imediato? Ou remeter valores do presente para desfrute futuro? Infelizmente, essa não é a filosofia de Lula. A filosofia dele é a dos piratas.

Ganhe a luta! Saqueie o que encontrar! Aproprie-se do tesouro que achar! Não acredite no amanhã. O dia é hoje. A hora é agora!

Lula pensa assim e seus seguidores, também. Jamais pensarão no poder como prestação de serviço. Não sabem colher com gratidão. Não sabem semear com generosidade. Por isso não sabem governar. Não ficam aos pés do povo. Querem o povo a seus pés. Não sabem servi-lo, mas sabem servir-se dele.