Título: De trotskista a ortodoxo na economia
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2006, Nacional, p. A10

Desde que emergiu como personagem político de primeira grandeza em 2002, o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, comportou-se de uma forma que nem o mais otimista dos defensores da ortodoxia econômica poderia prever. De origem trotskista, com participação no grupo de esquerda radical Liberdade e Luta (Libelu), Palocci tornou-se o principal defensor da ortodoxia e do liberalismo no governo Lula.

Com o assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André, em janeiro daquele ano, Palocci o substituiu na função de coordenador da campanha e do programa de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Na prefeitura de Ribeirão Preto, dera mostras de pertencer à ala direita do PT, privatizando a companhia municipal de telefone e dando a concessão de operação de tratamento de esgoto a empresas privadas em seu primeiro mandato, de 1992 a 1996. Além disso, tanto no primeiro quanto no segundo mandato (foi eleito em 2001), manteve ótimo relacionamento com a comunidade empresarial.

Palocci ainda não tinha chegado ao papel dominante que viria a desempenhar no governo Lula quando o mercado financeiro entrou em pânico com a disparada do candidato petista nas pesquisas no primeiro semestre de 2002. A crise atingiu seu auge em outubro, quando o dólar bateu em R$ 3,99 e o risco Brasil atingiu 2.243 pontos.

Nem mesmo a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, em 22 de junho, por Lula, acalmou o mercado. A Carta, cuja elaboração teve contribuição decisiva de Palocci, firmou o compromisso de Lula de manter a política fiscal de superávits primários grandes o suficiente para estabilizar e depois fazer cair a relação entre a dívida pública e o PIB.

Foi só no fim do ano, quando já estava claro que Palocci assumiria um posto de primeira grandeza no governo Lula, que o mercado deu os primeiros sinais de volta à normalidade. No fim de novembro, Lula confirmou-o como ministro da Fazenda.

Antes mesmo de ser confirmado, Palocci iniciou um périplo de encontros com economistas, mantendo intensos contatos com representantes do pensamento liberal de grande penetração no mercado financeiro nacional e internacional, como o consultor Affonso Celso Pastore, Paulo Leme, da Goldman Sachs, e Armínio Fraga, então presidente do Banco Central. Invariavelmente, eles saíam dos encontros descrevendo o médico Palocci como uma pessoa de grande cordialidade, forte bom-senso e com notável capacidade de ouvir e entender os temas mais complexos de economia.

CONTINUIDADE

Segundo o depoimento de participantes da transição entre os governos FHC e Lula, Palocci foi de vital importância no processo. Foi naquele momento que Lula, influenciado pelo futuro ministro da Fazenda, ficou definitivamente convencido a dar continuidade aos principais aspectos da política econômica anterior - superávits primários, câmbio flutuante e metas de inflação.

O diálogo franco de Palocci com a equipe econômica de FHC, por outro lado, foi fundamental para que o novo governo conhecesse em detalhes a herança que recebia, o que ajudou a enfrentar o primeiro ano de desconfiança do mercado. Dois momentos decisivos da futura gestão de Palocci na Fazenda foram os convites, no fim de dezembro, dos economistas Marcos Lisboa e Joaquim Levy para assumirem, respectivamente, a Secretaria de Política Econômica e a Secretaria do Tesouro.

Lisboa destacou-se como um dos coordenadores da chamada Agenda Perdida, documento encomendado em 2002 pelo então candidato à Presidência Ciro Gomes - um detalhado roteiro de reformas liberais e pró-mercado. Na prática, a Agenda Perdida virou o programa econômico do governo Lula, com exceção das áreas que fugiam do controle de Palocci, como energia e as agências reguladoras, ou de temas de dificílima aceitação política no Brasil, como a redução das despesas públicas e o desengessamento orçamentário.

Uma das primeiras medidas de Palocci foi elevar a meta de superávit primário de 3,75% do PIB para 4,25%, dando o tom conservador que viria a marcar sua gestão. Desde o fim de 2002, ficou evidente que o tripé formado pela política fiscal rigorosa, o câmbio flutuante e o sistema de metas de inflação, adotado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, seria integralmente preservado.

O tempo todo, Palocci foi alvo do fogo amigo de uma importante corrente do PT, que criticava a política econômica "neoliberal" do ministro da Fazenda. Houve ataques diretos em resoluções do Diretório Nacional do PT e outros documentos partidários e de tendências petistas, dos quais Palocci sempre soube se desembaraçar com diplomacia. Particularmente ambígua foi sua relação com o então poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, antes de este cair em desgraça e sair do governo. Dirceu deu apoio às iniciativas de Palocci no Congresso, mas internamente pendia para as alas mais críticas à política econômica.

CRESCIMENTO

Respaldados por uma conjuntura externa extremamente favorável ao Brasil, os resultados obtidos por Palocci foram espetaculares em termos de estabilização, mas deixaram a desejar do ponto de vista do crescimento. A inflação, que atingiu 12,5% no ano turbulento de 2002, caiu para 9,3% em 2003, para 7,6% em 2004, e fechou 2005 em 5,7%.

As reservas internacionais líquidas (excluindo os empréstimos do FMI) saltaram, no governo Lula, de US$ 16 bilhões para US$ 59 bilhões. As exportações praticamente dobraram nos três primeiros anos do mandato presidencial, saltando de US$ 60,3 bilhões em 2002 para US$ 118 bilhões em 2005. O saldo comercial pulou de US$ 13,2 bilhões no último ano do governo FHC para US$ 44,8 bilhões este ano. O risco Brasil, por sua vez, caiu para a faixa de 230 pontos, muito inferior à mínima histórica de 337 atingida antes de Lula chegar ao poder. O dólar despencou de R$ 3,5 para R$ 2,17.

A trajetória do PIB, porém, foi bem menos entusiasmante. A economia cresceu apenas 0,5% em 2003, no rescaldo da crise, acelerou para 4,9% em 2004, mas em 2005 voltou a ratear, ficando nos 2,3% - menos da metade da média dos países emergentes. A razão principal da desaceleração foi a política monetária duríssima imposta pelo BC. Entre setembro de 2004 e maio de 2005, o Comitê de Política Monetária (Copom), do BC, elevou a Selic, a taxa básica, de 16% para 19,75%. Depois, a partir de setembro, o juro básico foi reduzido muito gradativamente, e hoje ainda está em 16,5%.