Título: Identificação de célula-tronco cancerosa pode mudar terapias
Autor: Nicholas Wade
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/03/2006, Vida&, p. A16

Se no centro do tumor há exemplares anômalos de células-tronco, explica-se sua regeneração

Um dia, talvez num futuro distante, as células-tronco poderão ajudar a reparar tecidos doentes. Mas existe uma razão bem mais premente para estudá-las: as células-tronco são a fonte de, pelo menos, alguns tipos de câncer - talvez de todos.

Alguns pesquisadores acreditam que no centro de todo tumor existe um punhado de células-tronco anômalas que mantêm o tecido maligno. Se estiver correta, a idéia poderá explicar por que os tumores muitas vezes se regeneram mesmo depois de ser quase destruídos por drogas anticâncer. Ela também indica uma estratégia diferente para o desenvolvimento das drogas, sugerindo que deveriam ser selecionadas segundo a letalidade para as células-tronco cancerosas, e não - como ocorre hoje - por sua capacidade de matar qualquer célula e diminuir os tumores.

"Creio que esse é um dos desenvolvimentos mais interessantes na pesquisa do câncer nos últimos cinco anos", afirma Robert Weinberg, geneticista do câncer do Instituto Whitehead, em Cambridge, Massachusetts. "Cada vez mais pessoas estão aceitando a idéia. E acumulam-se as evidências de que existem células-tronco cancerosas em vários tumores."

CAÇA ÀS CÉLULAS-TRONCO

A idéia de que as células cancerosas têm as mesmas propriedades que as células-tronco é cogitada há vários anos. Mas só recentemente os biólogos desenvolveram técnicas para identificar células-tronco e sua presença em tumores.

As células-tronco cancerosas foram identificadas pela primeira vez em certos tipos de leucemia em 1997, por John Dick e colegas da Universidade de Toronto. Elas eram, porém, mais difíceis de identificar em tumores sólidos. Em 2003, contudo, Michael Clarke, hoje na Universidade de Stanford, conseguiu encontrar células-tronco cancerosas em tumores de mama. Ele mostrou que uma vasta maioria das células de um tumor de mama era incapaz de promover mais crescimento. Apenas um punhado era capaz de semear novos cânceres, e essas células lembravam as células-tronco por sua capacidade de se multiplicar e gerar células maduras.

Em 2004, Peter Dirks, da Universidade de Toronto, identificou células com essas características em tumores cerebrais humanos. No ano passado, C. Parker Gibbs, da Universidade da Flórida, anunciou ter identificado células similares no câncer ósseo.

"É uma enorme população de células a ser identificada. Mas, até agora, em cada câncer no qual as células foram cuidadosamente examinadas, elas foram encontradas", diz Gary Gilliland, da Universidade de Harvard.

Os biólogos ainda não sabem ao certo como as células-tronco cancerosas são geradas. É possível que as próprias células-tronco sofram uma mutação, ou mudança em suas instruções de DNA, que perturbe os estritos controles de sua auto-replicação.

A auto-replicação, propriedade fundamental das células-tronco, refere-se a sua capacidade de se dividir de modo desigual. Outras células dividem-se em duas células-filhas, mas uma célula-tronco pode se dividir entre uma nova célula-tronco e uma célula progenitora.

As células progenitoras perdem o poder de auto-replicação, mas ganham a capacidade de se diferenciar em células maduras do tecido servido pela célula-tronco. Depois dessa divisão, o número de células-tronco no tecido permanece igual, pois uma célula-tronco foi perdida e uma foi criada. Portanto, a população de células-tronco se renova à medida que gera novas células para o tecido.

MULTIPLICAÇÃO DESORDENADA

As células-tronco responsáveis pela manutenção de um tecido ou órgão podem regular sua própria quantidade, talvez percebendo, por meio de uma troca química, quando têm um "quórum". As células-tronco cancerosas perderam o controle sobre o tamanho de sua própria população.

A hipótese explica vários fatos de resto enigmáticos sobre o câncer. Muitos dos tecidos do corpo mais sujeitos ao câncer, como o sangue, a pele e a parede do intestino, são compostos por células de vida curta que sofrem grande desgaste.

Mas acredita-se que as células só se tornam malignas depois que uma série de mutações desabilita seus sistemas de controle genético. Como pode uma célula da pele, que vive apenas algumas semanas, sobreviver tempo suficiente para acumular a seqüência certa de mutações? É mais plausível supor que as mutações se acumulam na população auto-replicante de células-tronco que mantêm a pele e duram a vida toda de uma pessoa.

Se as células de um tumor são novamente injetadas num paciente num lugar diferente, como foi feito numa experiência de 1961 (que hoje seria considerada antiética), mais de um milhão de células precisam ser usadas até que um novo tumor se forme. Isso apóia a idéia de que apenas uma minoria minúscula das células de um câncer tem a capacidade de mantê-lo.

Uma droga anticâncer surpreendentemente bem-sucedida é o Glivec, usada no tratamento da leucemia mielóide crônica e outros três cânceres mais raros. Muitos pacientes que usam Glivec experimentam a remissão completa. Mas a droga não cura a doença, que às vezes retorna. Aparentemente, o Glivec ataca não as células-tronco cancerosas, e sim as células progenitoras a partir das quais são gerados os glóbulos brancos cancerosos.

QUESTÃO DE PROPORÇÕES

Embora muitos biólogos considerem interessante a idéia da célula-tronco cancerosa, nem todos acreditam que ela levará a novas terapias. Na visão de Bert Vogelstein, pesquisador de câncer da Universidade Johns Hopkins, tudo depende do tamanho da parte do tumor formada por células-tronco cancerosas.

Se a proporção for grande, as atuais drogas anticâncer já devem estar matando essas células-tronco, pois podem matar até 99% das células de um tumor. Neste caso, a idéia não seria tão útil.

"A meu ver, o verdadeiro atrativo da hipótese da célula-tronco cancerosa é que, se esse 1% de células remanescentes depois da quimioterapia bem-sucedida realmente forem células-tronco cancerosas, isso obviamente fornecerá a razão para diferentes formas de terapia que as ataquem", diz Vogelstein.

"Se o crescimento dos cânceres sólidos for motivado por células-tronco cancerosas, isso terá conseqüências profundas para a terapia do câncer", escreveu Irving Weissman, de Stanford. "Terapias dirigidas mais especificamente às células-tronco cancerosas poderiam levar a respostas muito mais duráveis e até mesmo curas de tumores metastáticos."

JOIO E TRIGO

Se a noção das células-tronco cancerosas está correta, então como elas podem ser eliminadas sem a perda das células-tronco normais, vitais para a manutenção dos tecidos do corpo? Pesquisadores esperam que as células-tronco cancerosas, graças a sua atividade excessiva, sejam mais dependentes que as células normais de certos processos celulares e, portanto, sejam mais vulneráveis a drogas que bloqueiem esses processos.

Gregory Plowman, diretor de Pesquisa da Genentech, que desenvolveu várias das principais drogas anticâncer, crê que o conceito faz todo sentido. A companhia investiu na OncoMed, fundada por Clarke, de Stanford, que desenvolve anticorpos monoclonais (clones a partir de uma única célula) contra células-tronco cancerosas.

Mas as companhias podem evitar o investimento mais amplo na área até que a biologia básica das células-tronco cancerosas seja melhor compreendida. "Nossa base de conhecimento ainda é bastante fragmentada. Precisamos de mais um ou dois anos de pesquisa antes de poder dizer às companhias farmacêuticas que elas deveriam fazer isso ou aquilo", diz Weinberg.