Título: Casuísmo pela paz no Haiti
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2006, Notas e Informações, p. A3

O proverbial jeitinho brasileiro e os conhecimentos de direito eleitoral comparado do embaixador canadense em Porto Príncipe desataram o nó do pleito presidencial haitiano e, pelo menos por ora, evitaram novas violências e mortes no já suficientemente ensangüentado país caribenho. Na quinta-feira, nove dias depois de uma votação em primeiro turno concorrida, atribulada e marcada por denúncias de grossa fraude, o órgão responsável pela eleição enfim declarou vencedor por maioria absoluta o candidato favorito René García Préval, que já havia entrado para a história haitiana como o único dos seus presidentes eleitos a completar o mandato e entregar o poder ao sucessor, também eleito.

Porto Príncipe estava na iminência de mais uma explosão popular depois do anúncio oficial de que Préval estava com 48,76% dos votos, o que levaria a disputa para um tira-teima com o segundo colocado, Leslie François Manigat (11,83% dos sufrágios). Os enfurecidos partidários de Préval alegavam que, sabendo-se sem chances desde o início, Manigat orquestrou uma expressiva votação em branco, com cédulas reais e forjadas. Com a intensificação dos protestos, os representantes diplomáticos do chamado grupo de amigos do Haiti - Brasil, Canadá, Chile, EUA e França - tentaram persuadir Manigat a renunciar à candidatura, o que tornaria dispensável o segundo turno.

Como ele se recusava a aceitar a sugestão, partiram em busca de um casuísmo para dar por findos os trâmites eleitorais nesse país onde o Estado é de cartolina e a miséria, assombrosamente real. Instruído pelo chanceler Celso Amorim, o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, indicou aos colegas que a saída poderia estar no uso que se fizesse dos votos em branco. E o embaixador canadense descobriu que na Bélgica os votos em branco são distribuídos por igual entre os candidatos, e pressionou os haitianos a fazer o mesmo.

Repartido o total de brancos entre os 33 (!) candidatos à presidência, Préval conseguiu passar a barreira da metade mais um dos votos e foi declarado presidente eleito do Haiti. Uma nota de rodapé nessa história foi escrita em Brasília. Na manhã de quarta-feira, o assessor internacional do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, surpreendeu e irritou o ministro Amorim ao anunciar que o Planalto queria ver Préval proclamado presidente sem mais delongas. E foi, a rigor, o que acabou acontecendo. Tem-se aí a enésima demonstração de que, sem a ingerência, o dinheiro e a presença militar estrangeira, o nome do movimento que levou Préval ao poder - Esperança - está para o Haiti como a miragem para o deserto.

Mesmo na incerta hipótese de que os vencidos continuarão a protestar apenas por meios pacíficos - Manigat disse que o estratagema para romper o impasse eleitoral equivaleu a um "golpe de Estado" -, parece claro que a Força de Paz nas Nações Unidas, integrada principalmente por 1.200 soldados brasileiros, não poderá deixar o país até onde a vista alcança. Préval tem o ar de ser um homem de bem. Durante a monstruosa ditadura de Papa Doc Duvalier (1957-1971), viveu na Europa e nos EUA. Ocupou três ministérios no primeiro governo do padre Jean-Bertrand Aristide, seu mentor e amigo, entre 1991 e 1995 (em 2004, um golpe militar apoiado pelos EUA e a França amputou o seu segundo governo; desde então, vive no exílio).

Préval, que terá um mandato de cinco anos, tem sido instado pelo embaixador e o chanceler brasileiro a chamar a oposição para o entendimento. Socialista de centro-esquerda, o novo líder haitiano promete um governo popular e participativo, escola para todas as crianças, modernização da infra-estrutura e segurança para investimentos estrangeiros. Mas as suas chances de mudar o Haiti dependem tanto do aporte de US$ 1 bilhão anunciado pelos EUA e a ONU depois da queda de Aristide, e do qual os haitianos não viram a cor, como,principalmente, de uma ajuda regular do exterior. Ainda que essa ajuda venha a ser concedida, o retrospecto aconselha a recear sempre o pior naquele desafortunado país.