Título: Vestígios de um escritor caladão
Autor: Daniel Piza
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2006, Nacional, p. A12,13

Prima que toma conta dos 'miguilins' descreve jeito de Rosa

Rosa anotava provérbios: "O diabo gosta de quem não acredita nele"Dona Calina da Silveira Guimarães, 80 anos, prima de Guimarães Rosa, tem muitas histórias sobre Joãozito, como familiares o chamavam e ele gostava de ser tratado especialmente pelas netas. Mas tem três qualificativos que usa constantemente: "Ele era caladão, só ficava ouvindo"; "ele tinha uma memória extraordinária"; e "ele era muito simples, estava sempre à vontade, de cara boa". E foi por ser esse escritor atento e amistoso, que lia em mais de dez idiomas e dizia aprender muito com cavalos e vacas, que conseguiu escrever a obra que escreveu. "A gente se vê ali, é nossa região que tá lá."

Rosa saiu de Cordisburgo ainda criança, com 9 anos, mas sempre voltou para lá nas férias e costumava ficar na fazenda dos pais de Calina, a Serandi, para onde ela faz questão de nos acompanhar. Conta que lá plantavam "de tudo" e que as moças liam romances escondidas. Mostra a pedra onde o açúcar suava ao sol, uma das imagens da Serandi que Rosa usa em livros como Primeiras Estórias. "Ele descreve igualzinho", diz. Mas as pessoas daqui entendiam sempre o que ele escrevia? "Às vezes a gente dizia para ele: 'Cê tá escrevendo muito embolado'. E ele ria... Era muito fechado." E montar a cavalo, ele sabia montar bem? "Ele? De jeito nenhum", diz Calina, e agora é ela que dá uma risada. Ela também conta que "ele não dava para a medicina; era muito emotivo".

Calina era médica em Juiz de Fora quando, há dez anos, decidiu se aposentar e voltar para Cordisburgo. Soube que o Museu Casa Guimarães Rosa, localizado na casa e na venda que foram de seu pai, estava fechado. E começou a desenvolver com sua sobrinha, Dôra, a idéia de contar trechos da obra. Daí nasceram os "miguilins" (assim batizados por causa do personagem infantil de Campo Geral, uma das histórias de Corpo de Baile, outro livro de Rosa que completa 50 anos), adolescentes contadores de histórias que hoje fazem tanto sucesso que freqüentemente se apresentam em São Paulo e outras partes do Brasil. Calina diz que falta apoio e sabe a importância do que faz, não só para divulgar a obra de Rosa, mas também para o desenvolvimento dos garotos, a quem ela ensina até mesmo o uso dos talheres e noções de sexualidade.

A emoção de ouvir os miguilins nos fundos do museu é inevitável. Naturalmente, os mais velhos se saem melhor, como Dayana, a coordenadora, que já tem 21 anos e narra o trecho em que Riobaldo encontra a ninfa Otacília, "flor do amor tem muitos nomes"; e Fábio, 24 anos, agora funcionário do museu, que volta aos tempos de miguilim e, com voz forte e rica, faz lacrimejarem as pessoas presentes com a cena do pacto com o diabo, "o silêncio de um ser só". Brasinha comenta: "Rosa escreve o que a gente quer falar e não dá conta."

Brasinha nos guia até a bela Gruta de Maquiné, a 15 minutos de Cordisburgo, que Rosa cita algumas vezes em sua obra e para a qual fez até um poema no livro Magma, em que menciona os "respiradouros do centro da terra" e "os séculos medidos em milímetros". Ali ao lado fica um restaurante, Chero's Bar, de dona Haydée Viana, onde se come feijão tropeiro, frango ao molho pardo e doce de leite muito saborosos, como Rosa apreciava.

No caminho, Brasinha reparte as conversas que teve o privilégio de ter com Manuelzão, o vaqueiro que, ao lado de Zito e Bindóia, conduziu a boiada que Rosa acompanhou em 1952. Brasinha conta que Manuelzão ficou bem cansado com as perguntas incessantes daquele convidado, para quem tudo tinha sido organizado a pedido do chefe do vaqueiro, Chico Moreira, primo de Rosa. Ele queria saber os nomes de tudo, anotar todas as quadrinhas, registrar o significado das expressões, além de tomar banho nu em veredas. Zito o dizia medroso; na hora de dormir, Rosa pedia que a lamparina ficasse acesa. O escritor também se queixava das dores da cavalgada. E, mais curiosamente, ficava fazendo perguntas sobre Deus ou morte e anotando provérbios da região como "o diabo gosta de quem não acredita nele".

Manuelzão não partilhava do misticismo de Rosa. Dizia:

"Não tem céu, não tem inferno. Viajei o Brasil todo, sete Estados (sic), e nunca vi uma placa dizendo 'Céu' ou 'Inferno'."

E quando lhe perguntavam se tem vida depois da morte:

"Tem nada. Talhou o sangue, acabou. A gente fica um pau."

Todos os vaqueiros dessa viagem estão mortos. E todos os fazendeiros que deram pouso à comitiva, também. Na Fazenda Santa Catarina, o dono, Wilson Mendes, 68 anos, era apenas um garoto quando Rosa lá esteve e descreveu o alpendre e os lírios da casa. "A gente não sabia que ele era pessoa importante." A única pessoa que se lembra bem do escritor durante a viagem é dona Antonieta Vargas, mulher de Juvenal, da Fazenda Paulista, que fica orgulhosa de lembrar que Rosa a adjetivou de "muito bonita" e se deliciou com sua comida. "Era um homem muito amável, educado." Rosa, que o casal logo viu que "não era vaqueiro", reencarnou seus tempos de médico e cuidou da tosse de um filho deles, receitando chá de laranja e lhe dando uma aspirina.

Para não ver sumir de vez essa memória, 13 cidades da região começaram a montar um Circuito Guimarães Rosa, para auxiliar os cada vez mais numerosos visitantes que querem seguir a trilha de sua viagem. Por enquanto, há apenas folhetos e placas, mas a intenção é prestar serviço mais completo. Guias locais são necessários a cada etapa, pois as fazendas e as veredas não são sinalizadas e, no sertão, parece que todos os caminhos se bifurcam.

Carlão, o guia de Três Marias, nos leva até o local onde Riobaldo vê Diadorim pela primeira vez, na Barra do rio De-janeiro, às margens do São Francisco. No trajeto, decidimos parar para ver o Velho Chico mais de perto. Andamos pelo meio de um cerrado sem trilhas. Carlão se vê num dilema. Opta pela esquerda, vê que não é o caminho que já conhecia. Mais um pouco, porém, e damos com o rio. Ele solta uma frase que Rosa anotaria:

"Às vezes o erro dá num acerto."