Título: Artimanhas da política
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Costuma-se citar pela metade a definição dada por Bismarck à política. Ele não disse apenas que a política é a arte do possível. Acrescentou: e do indicado. Um exemplo ilustrativo da definição como um todo, permito-me dizer, foi o pacto nazi-soviético. Era possível, nada obstante a surpresa para o mundo livre ao se verem de mãos dadas o comunismo e o nazismo. Tanto era possível que, em nome de Hitler e Stalin, foi assinado por Ribbentrop e Molotov, na presença de Stalin, em agosto de 1939. Era o indicado? Não. Como escreveu Kissinger a respeito: "Hitler e Stalin perseguiram alcançar objetivos não tradicionais usando meios tradicionais. Stalin à espera do dia em que um mundo comunista governasse de dentro do Kremlin. Hitler havia esboçado sua visão doentia de um império racionalmente puro, governado pela raça germânica superior." Dois objetivos antagônicos só possíveis no século 18, quando a repartição da Polônia se deu em favor de Frederico, o Grande, Catarina, a Grande, e a imperatriz Maria Teresa, em 1772. Não era, pois, indicado, porque duas ideologias conflitantes em pouco tempo levariam ao fracasso do plano oportunista.

Não transponho, de logo, essas observações para as alianças de que Lula precisa para se reeleger. As da eleição de 2002, impuras, arrastaram para o PT as manchas que arrasaram a retórica ética do partido, a sua proclamada decisão de fazer um partido que não fosse igual aos que ele combatia, "farinha do mesmo saco". Deles se serviu Lula para realizar algumas reformas que havia combatido ferozmente na oposição. Embora sua eleição tenha sido responsável pela bancada de 91 petistas na Câmara dos Deputados, ainda seria minoria para reformar a Constituição de 88, a mesma que ele se negou a autografar, porque, no seu entender de revolucionário de então, achava que não atendia aos seus objetivos socialistas, inspirados em Fidel Castro, o mais velho ditador do mundo, que ele visitava, levando grupos de espontâneos militantes ou simpatizantes, para que conhecessem Fidel. Ao serem recebidos, Lula se dirigiu a Fidel, enlevado, agradecendo o que o tirano teria feito pelo seu povo, que vive hoje no paraíso da igualdade. Isso pouco antes de sua metamorfose, que se iniciou com a carta de intenções morigeradas, envolvido na propaganda do marqueteiro Duda de transformá-lo no "Lula, Paz e Amor", em vez do Lula que sonhava com o slogan de "Paz e Terra", de que se aproveitou Lenin para o outubro de 1917.

Agora, para a reeleição, é preciso não repetir a política de poder, e não de eleição, crítica feita pelo desalentado escritor Frei Betto, de velha formação marxista e até leninista, quando serviu ao valente Marighella na mais forte das guerrilhas urbanas do período militar. O mesmo Frei Betto que, além de orientador religioso segundo a Teologia da Libertação, se decepcionara, por isso, com o carro-chefe de Lula, o programa Fome Zero, de que fazia parte como dirigente e do qual se retirara o bispo dom Mauro Morelli em desinteligência com o Frei. Visando à reeleição, Lula, ardiloso, demitiu logo o então ministro da Educação, Cristovam Buarque, para não ter de dividir com ele o chamariz do Bolsa-Escola e incluí-lo no Bolsa-Família. Expulsou os petistas autênticos da teologia socialista da libertação, ainda leitores da doutrina da dependência. Conviveu com os demais, que perdeu no auge da descoberta do procedimento do núcleo dirigente do PT, que também negociou as alianças espúrias.

O PL, se tivesse fidelidade ao seu programa liberal, recusaria o oportunismo. Mas falou mais alto a recompensa do dinheiro farto. Como só era liberal no programa de Álvaro Valle, seu fundador, foi um aliado proveitosos para operar o mensalão, a compra dos votos dos incorruptíveis liberais. Diferentes não foram o PP do injustiçado Paulo Maluf e menos ainda o PTB de um amigo a quem daria cheque em branco. Era a única forma de ter apoio dos deputados, não só dos "300 picaretas" que disse haver na Constituinte, como de uma nova geração deles, para consolidar a bancada governista. Levantado o véu que encobria a patifaria, a desfaçatez e a desonestidade produzida por Marcos Valério e Delúbio Soares, o presidente afasta-se do próprio PT. De nada sabia. Fora traído. Coração generoso, depois perdoou os erros, porque "errar é humano".

Agora o aliado preferido é o PMDB. E logo para reeleição no primeiro turno. Conta com poderosos líderes a favor da aliança. A Justiça o ajuda negando razão aos que não provam tê-la. Liminares salvadoras do Direito são concedidas, nada obstante a grita dos inconformados com a Justiça, que é vítima de críticas, pois, como disse um dos eminentes ministros, o juiz que ceder a críticas não é juiz. Liminares são a última salvação dos governistas quando vencidos nos entreveros do Parlamento. A mais recente, interferindo nos estatutos do PMDB e impedindo a sua convenção, foi um gesto corajoso do presidente do STF, ou melhor, do já candidato a governar o Maranhão, para sair do último lugar em que o colocou a ONU, segundo os índices de qualidade de vida. Além de íntegro, o Judiciário não merece ser tido como departamento do Executivo só porque difamadores dizem que há ministros que pagam o tributo da gratidão a quem os nomeou, ou, mais dignos ainda, a quem os indicou e garantiu a nomeação.

O PMDB civilizou-se. Não é mais aquele do doutor Ulysses. Os estadistas que lhe restam, concordes com a reeleição, o são não por causa da reeleição em si, mas pelo bem das novas gerações, em que todos, além de comerem três vezes ao dia, pensam patrioticamente o Brasil. Sabem tudo de política, alguns há cinco décadas, no mínimo. Leitores de Bismarck, fazem a política do possível e também do indicado. Pelo amor ao Brasil, neste momento histórico. Daí a escolha do líder do PT.