Título: Humanismo integral
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2006, Notas e Informações, p. A2

"Grande homem de nossos tempos, um mestre na arte de pensar, viver e de orar", assim, sucinta e expressivamente, definiu o papa Paulo VI a personalidade de Jacques Maritain - filósofo, teólogo e homem público -, cujo centenário de adesão ao catolicismo, por inspiração do escritor Léon Bloy, é celebrado neste ano.

Fazer memória de seu denso e extenso legado é também refletir sobre temas que caracterizam a atualidade de sua obra, com reverberações no campo político.

Continuador da obra de Santo Tomás de Aquino, ao formular seu neotomismo essencialista enfrentou acatados mestres analisando e contestando-lhes os conceitos e, sobretudo, as conclusões que deles derivavam, mostrando o drama que um humanismo egocêntrico estava declinando para a sociedade de nossos tempos.

Num primeiro momento da Idade Moderna, observa Maritain, o Racionalismo construiu uma imagem da personalidade humana ciosa de sua perfeição por essência, que inadmitia qualquer intervenção externa, proviesse ela da revelação e da graça divina ou de uma lei humana da qual o homem não tivesse sido o próprio autor.

Cedo percebeu, e o alertou Maritain, que o individualismo burguês do século 19 haveria de dar lugar aos totalitarismos marxista, nazista e fascista da centúria passada, regimes que provocariam as duas Grandes Guerras Mundiais e a conseqüente - e ininterrupta - série de conflitos localizados. Este, aponta Maritain, o desfecho fatal de nossos tempos: um processo comandado pelo endeusamento da pessoa humana somente poderia desdobrar-se numa tríplice tragédia - do homem, da cultura e do próprio Deus, cuja morte Nietzsche se incumbiria de anunciar numa conseqüência inarredável de seu Niilismo.

Amigo de personalidades como León Bloy, Charles Péguy, Emmanuel Mounier e posteriormente de Charles de Foucauld, este recentemente beatificado por Bento XVI, Maritain lançou em 1927 seu primeiro livro sobre política, intitulado Primado do Espiritual, onde contesta as idéias de Charles Maurras, o qual, mediante o movimento intitulado "Ação Francesa", propagava, ao lado do agnosticismo, um nacionalismo radical.

Suas reflexões o levaram, posteriormente, à sua obra-síntese, o Humanismo Integral, publicada em 1936, um projeto político que ele desvenda como sendo o despertar da consciência cristã face a face com os problemas temporais, sociais e políticos, implicados na restauração de uma nova cristandade. Tal concepção se desdobraria em três níveis: o comunitário, porque tem no bem comum a exigência expressa da natureza humana; o personalista, porque consiste numa perene busca da perfeição e da liberdade, de molde a que a pessoa possa desenvolver os diversos graus de sua vida no plano material, moral e intelectual; e o pluralista, uma vez que, em oposição ao totalitarismo do Estado, se deve contrapor a "concepção de uma sociedade múltipla, que reúne em sua unidade orgânica uma diversidade de grupos e estruturas sociais".

Esse conteúdo ético em defesa da liberdade é o que qualifica sua extensão às variadas comunidades e aos diversos corpos sociais; é também o que justifica estender-se a condição de homem público a todos quantos, embora não exerçam funções governamentais, estejam empenhados - como cidadãos - na solução dos problemas da sociedade: porquanto, confundindo-se com seu objetivo mesmo de ser um dever cívico, a política é vista por Aristóteles como "a arte das artes..., a ciência superior a todas as demais, pois seu fim é o bem maior, o seu grau supremo residindo na justiça".

Seu humanismo integral, destarte, propugna a construção de uma nova cristandade, não mais "sagrada", porém laica, objetivando a construção de um ideal histórico concreto. Como o essencial ao bem comum "é respeitar e servir os bens supratemporais da pessoa humana, a cujo serviço deve estar, a sociedade política terrena não tem como fim levar a pessoa humana à sua perfeição espiritual", mas a "desenvolver condições que levem a coletividade a um grau de vida material, intelectual e moral conveniente para o bem e a paz do todo". E, dessa forma, a cidade temporal terrena pode e deve ligar-se nas diferentes regiões do mundo, não de maneira unívoca, mas análoga.

O exercício da política, como corolário, não pode ser um fim, antes um instrumento de transformação, reclamada especialmente nas sociedades como a nossa, em que a democracia ainda não lançou raízes profundas no tecido social e exige a consolidação e o continuado aperfeiçoamento das instituições, para que sejam capazes de responder às exigências da governabilidade. Pois cidadania é sinônimo de participação social, direito e dever; cidadania representa não apenas o conjunto de direitos para uns e deveres para outros, mas - e igualmente - direitos e deveres para todos.

Péricles, em oração sobre a Guerra do Peloponeso, hino onde se formulam os fundamentos básicos da democracia, entendia que o discurso não prejudicava a ação; o que lhe parecia prejudicial era que as partes não se esclarecessem pela discussão. Daí considerar fundamental sua cidade ser governada pela intervenção pessoal de todos os cidadãos, anatematizando ao mesmo tempo quem não partilhava dessa obrigação cívica, como pessoa indiferente à sociedade e à República.

O testemunho de Jacques Maritain, seu pensamento, sua conduta e ação missionária, conduz, portanto, nosso olhar acima do horizonte das preferências pessoais, das opções partidárias e das divergências ideológicas para que se possa tomar a atividade política como paradigma, inspiração e prática capazes de ir além do concretamente possível e buscar alcançar o que para muitos é aparentemente impossível.