Título: Bacalhau e Recoleta
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2006, Economia & Negócios, p. B2

Foi uma boa surpresa: na véspera da Páscoa, caíram os preços do chocolate e do bacalhau. Verdade, sim, senhor, sim, senhora. Está lá no índice da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), que mediu a inflação de 30 dias encerrados em 7 de abril. Chocolate, queda de 3,12%; bacalhau, redução mais forte ainda, de 7,11%. Tem que ver com o dólar muito barato. Bacalhau é importado. Chocolate tem boa produção local, mas também chegam importados que forçam a competição.

Aí está a prova simples: a população fica mais rica com o dólar barato (ou o real valorizado). Tanto para compras aqui mesmo, quanto para gastos no exterior. Se até 2001 eram os argentinos que invadiam as praias brasileiras, agora é de novo a vez dos brasileiros ocuparem os cafés da Recoleta.

De outro lado, alguns setores industriais anunciam que estão deixando de exportar porque já não compensa. Para simplificar, imaginemos o caso de um fabricante de calçados que entrou no comércio externo com o dólar a R$ 3. Vendendo o par a US$ 30 nos EUA, fazia R$ 90 e ganhava dinheiro. Agora, para fazer os mesmos R$ 90, precisa vender os mesmos sapatos por US$ 42, um aumento de 40%.

Ora, o mercado internacional é muito disputado, não é fácil impor ao cliente um reajuste de preço dessa ordem. É verdade que a economia mundial está aquecida, os preços internacionais estão em alta, em alguns setores de mais de 100%. Mas isso vale apenas para certos produtos estratégicos - petróleo, minério de ferro e aço, por exemplo -, cuja produção não pode aumentar assim de uma hora para outra.

No caso dos sapatos, não é difícil para os chineses aumentarem sua produção de 9 bilhões para 10 bilhões de pares ao ano. Ou seja, é difícil para o exportador brasileiro convencer a rede de lojas nos EUA a comprar o produto brasileiro com 40% de aumento.

De outro lado, o dólar barato favorece ganhos de produtividade e eficiência para a indústria brasileira. Barateia a importação de máquinas, equipamentos e tecnologia de ponta. Mais eficiente, a empresa pode vender mais barato e compensa a valorização do real.

Sim, mas prejudica a indústria brasileira de bens de capital, com dificuldades para competir com os importados.

E assim vai, sempre uma no cravo, outra na ferradura. Como resolver esses dilemas?

Alguns analistas dizem que o dólar precisa subir rapidamente para algo em torno de R$ 2,70. Seria esse o valor que deixaria de novo competitivos muitos setores hoje excluídos do mercado externo.

O que sugere três observações.

A primeira: o pessoal ganhou um dinheiro danado quando o dólar estava lá em cima. Lembram-se? Ficou bom tempo acima dos R$ 3.

A segunda: o dólar mais caro vai encarecer tudo o que vem de fora, de bacalhau a máquinas e tecnologia. Reduz o poder aquisitivo da população. Tudo bem com isso?

A terceira: como levar o dólar a tamanha valorização? Só tem um jeito: o governo federal, por intermédio do Banco Central e do Tesouro, sai comprando dólares, aumentando a demanda por moeda americana e forçando sua alta.

Ocorre que o governo já está fazendo isso - e pesadamente. Comprou mais de US$ 40 bilhões nos últimos tempos - e, se não tivesse feito isso, a moeda americana já estaria abaixo dos R$ 2 . Mas não consegue tirar a cotação dessa faixa de R$ 2,10 a R$ 2,20.

Há muito dólar entrando na economia brasileira. No ano passado, o comércio externo deu um superávit de US$ 45 bilhões. Outros US$ 16 bilhões entraram como Investimento Externo Direto (IED), dinheiro considerado bom, pois se destina a aplicações em negócios do setor produtivo (fábricas, lojas, etc.). Só aí já são US$ 61 bilhões líquidos em apenas um ano. Note-se: muita gente diz que o problema é que os juros brasileiros muito elevados atraem muito dinheiro especulativo. Atraem, mas é a menor parte da história. O investimento financeiro é menor que o IED.

E aí funciona que nem bananas: tem muito na praça, cai o preço.

Por outro lado, para comprar dólares o governo usa o dinheiro arrecadado com os impostos que todos pagamos. Ou faz dívida em reais (cara). Ou seja, em qualquer caso, é uma operação discutível. Não seria melhor gastar o dinheiro em escolas e hospitais, em vez de comprar dólares?

Tudo considerado, nas atuais circunstâncias é praticamente impossível para o governo puxar o dólar muito para cima. Mesmo que se proibisse a entrada de investimentos no mercado financeiro - o tal dinheiro especulativo -, não resolveria. E, em contrapartida, até aumentariam os juros, pois haveria menos dinheiro para comprar os papéis do governo.

O modo clássico de escapar dos dilemas brasileiros é deixar o mercado funcionar. O dólar barato estimula importações, o que significa que os importadores precisarão comprar a moeda americana. Assim, aumenta a demanda, sobe o preço.

Mas importar o quê?, reclamam empresários. Muitos deles acham que só se pode estimular a importação de produtos que não tenham similar nacional. E, sobretudo, dizem que é um desperdício gastar em consumo, como bacalhau e chocolates.

Mas controlar isso, em larga extensão, é praticamente impossível. E, certamente, não é desejável. Seria oportunidade para lobbies e corrupção. Produtores de sardinha brasileira tratariam de bloquear a importação do similar bacalhau.

Na época da reserva de mercado para informática, para importar um computador era preciso pedir autorização ao governo, que, então, fazia uma consulta à praça para saber se algum fabricante brasileiro poderia produzir aquele equipamento. Sempre aparecia um gaiato que se dizia em condições, obtinha a licença de fabricar e depois ia se "entender" com os interessados. Deu em corrupção e atrasou séculos toda a economia brasileira.

Tudo isso para dizer que é verdade, sim, que o dólar está barato. Na sua última edição de março, a revista The Economist publicou um balanço das cotações das principais moedas do mundo desenvolvido e emergente. E está lá, sem dúvida: desde o início deste ano, o real foi a moeda que mais se valorizou em relação ao dólar. A maior parte das moedas se valorizou, mas algumas se desvalorizaram, como as da Argentina, do México e do Chile, esta com 4% de queda, a primeira nesse quesito.

Portanto, pode-se dizer que temos um problema de taxa de câmbio valorizada. Mas não se pode dizer qual é a cotação ideal, porque certamente houve mudanças estruturais importantes na economia brasileira e na mundial. Afinal, mesmo com o real valorizado, as exportações continuam crescendo vigorosamente.

Também se pode dizer que não há soluções fáceis para o câmbio. E que são indesejáveis todas as propostas para fechar o comércio externo e/ou aumentar o controle do governo sobre o que se pode ou não importar. Precisamos de mais, e não de menos comércio externo. Há países com economia bem mais aberta que a nossa e com moeda menos valorizada. Ou seja, não é preciso fechar a economia para defender a moeda e a indústria locais.

Juros altos e gastos excessivos do governo são parte do problema. Parte importante e, sobretudo, a mais difícil de resolver.

Tudo considerado, não se pode contar com uma forte valorização do dólar no curto e no médio prazo. É certo que aumentar as importações é uma boa. No mais, continuamos no debate. Enquanto isso, bacalhau, Recoleta e, claro, Miami.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Home page: www.sardenberg.com.br