Título: A globalização ameaçada de morte
Autor: Niall Ferguson
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Economia & Negócios, p. B8

Medidas contra a abertura comercial ganham força, o que pode levar o mundo a uma nova Grande Depressão

Estaríamos testemunhando o começo do fim da globalização? E deveríamos comemorar ou lamentar essa perspectiva? Uma coisa é os franceses bloquearem aquisições internacionais e protestarem contra o aumento da flexibilidade do mercado de trabalho.

Do arquicharlatão presidente da França, Jacques Chirac, ao mais tolo estudante da Sorbonne que ressuscita as manifestações de 1968, a globalização sempre será, para os franceses, a "anglobalização".

No entanto, quando os americanos começam a questionar a sensatez da integração econômica internacional, algo grave está acontecendo.

Durante anos, Lou Dobbs, da CNN, usou seu programa no horário nobre para atacar o governo do presidente George W. Bush por não deter a entrada de imigrantes ilegais - na maioria mexicanos - nos Estados Unidos. Mas só nas últimas semanas o assunto motivou uma verdadeira agitação política.

Os senadores americanos brigam em torno de um projeto de lei para criar um novo sistema de trabalhadores convidados que também significaria uma anistia para os atuais imigrantes ilegais.

Enquanto isso, os legisladores na Câmara pedem a construção de uma cerca intransponível ao longo da fronteira entre os EUA e o México - uma espécie de cortina de ferro. Esta reação contra as fronteiras porosas, contudo, não se limita à questão da imigração.

Ao mesmo tempo, o Congresso tenta endurecer as regras do investimento estrangeiro nos EUA, desde quando surgiu a notícia de que uma companhia baseada nos Emirados Árabes Unidos poderia ganhar a propriedade de instalações em portos americanos. E então há os protecionistas, que em geral representam Estados com grandes centros de manufatura. Nada lhes agradaria mais que impor uma enorme tarifa às importações chinesas.

Assim, os fluxos globais do trabalho, capital e bens estão sob ataque - e isto num país que contou com um crescimento robusto na maior parte dos últimos cinco anos. Eu tremo só de pensar no que estaria partindo do Congresso se o país estivesse em recessão. Presumivelmente, uma lei de auto-suficiência total, impondo a construção de uma vasta e impermeável cúpula de costa a costa.

Na última vez em que a globalização morreu, dizem alguns historiadores, foi uma reação americana que a matou. Há um século, a economia mundial estava, em muitos aspectos, tão integrada quanto hoje.

Os índices de migração eram comparativamente altos, assim como o comércio em relação à produção. Os fluxos de capital de hoje são maiores em termos relativos, mas há um século eram distribuídos de modo mais equilibrado entre os países ricos e pobres.

Depois de 1914, no entanto, a globalização ruiu, e nos anos 30 a economia mundial já estava fragmentada - com conseqüências desastrosas para o crescimento e o emprego. A grande ruptura provocada pela 1.ª Guerra Mundial certamente foi responsável por grande parte do dano, afundando milhares de toneladas de cargas de navios mercantes e cortando cabos de telégrafo internacionais.

Mesmo antes da guerra, contudo, a globalização já morria aos poucos, graças a iniciativas legislativas. Já em 1882, os Estados Unidos haviam introduzido a Lei da Exclusão Chinesa, a primeira de uma série de medidas destinadas a restringir a imigração aos europeus brancos. Cotas para outros grupos étnicos foram introduzidas entre as guerras. Assim, em meados dos anos 30, o fluxo de novos imigrantes para os EUA já estava quase extinto.

O mesmo valeu para o comércio. Nunca totalmente comprometidos com o comércio livre no século 19, os EUA aumentaram as tarifas dramaticamente entre as guerras.

A lei comercial protecionista Smoot-Hawley, aprovada em junho de 1930, desferiu um golpe fatal contra a confiança empresarial, aumentando o dano já provocado pelo colapso de Wall Street.

IMIGRANTES

Os defensores de uma nova geração de medidas antiglobalizantes alegam a intenção de proteger grupos nativos vulneráveis da devastação por parte da concorrência. Eles apontam para estudos segundo os quais os maiores perdedores da imigração são os estudantes que abandonam o ensino médio.

Outras evidências mostram que são os trabalhadores manuais, sem instrução, os mais sujeitos a sair perdendo com o comércio livre com a China.

Mas seria um erro culpar a globalização pelas crescentes desigualdades da sociedade americana e tentar corrigir as coisas com as velhas e fracassadas políticas do nativismo e do protecionismo.

A desigualdade americana tem muito mais a ver com impostos não tão progressivos e provisões de bem-estar desiguais que com imigração e comércio livre, e muito menos com o livre movimento de capital (sem o qual, não nos esqueçamos, o consumo americano teria de ser drasticamente reduzido, dado o tamanho do déficit em conta corrente dos EUA).

Os benefícios econômicos agregados representados pela atração de pessoas economicamente ambiciosas ao redor do mundo são reais. Num mercado de trabalho flexível como o dos Estados Unidos, os imigrantes desempenham um papel fundamental. Em sociedades que envelhecem, com as da Europa Ocidental, os imigrantes são especialmente necessários. Não está claro, é verdade, se os mercados de trabalho super-regulados da Europa podem absorver e explorar com sucesso suas energias juvenis.

Mas isso não muda a lógica econômica básica. Um mercado de trabalho global ainda mais liberalizado impulsionaria o crescimento econômico em toda parte. Restrições à imigração o reduziriam.

Não faz sentido pôr em risco os benefícios da globalização para proteger as perspectivas de emprego dos que abandonam o ensino médio. Portanto, eis aqui uma modesta contraproposta para a Câmara.

Em vez de construir uma nova Cortina de Ferro cara, horrenda e provavelmente ineficaz, poderíamos usar o dinheiro para transmitir uma mensagem simples aos garotos das escolas americanas: se você for reprovado, afundará.

Sim, garotos e garotas, a realização acadêmica é o único caminho para o emprego decente numa economia no topo da cadeia alimentar tecnológica. Abandonem a educação sem qualificações e vocês terão sorte se conseguirem um trabalho ao lado dos mexicanos colhendo frutas ou arrumando prateleiras.

Soa um tanto rude, eu sei. Mas uma segunda Grande Depressão soa muito mais rude.