Título: Bento XVI completa 1 ano à frente da Igreja
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2006, Vida&, p. A24

Cardeal ultraconservador se tornou um papa discreto e meditativo

A três dias de completar seu primeiro ano como líder maior dos católicos, o papa Bento XVI pode ser descrito - pelo menos até agora - como aquele que "não é". Conforme já se previa, não é presente nem carismático como João Paulo II, seu antecessor. E, contrariando as expectativas, não é autoritário nem dogmático como o cardeal Joseph Ratzinger, sua identidade antes de ser eleito papa.

"Bento XVI é um papa cinza, sem cor", afirma o jornalista Juan Arias, que por 14 anos acompanhou o dia-a-dia da cúpula católica como correspondente do jornal espanhol El País no Vaticano. "Ele é mais meditativo e contemplativo."

Durante 24 anos, Bento XVI foi o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. À frente da versão moderna do Tribunal do Santo Ofício, o cardeal Ratzinger foi o homem mais temido do Vaticano - bem mais que o papa João Paulo II. Nesse período, perseguiu e silenciou religiosos progressistas, como o brasileiro Leonardo Boff e o bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), d. Pedro Casaldáliga.

O que sobrou do inquisidor? Em novembro, Bento XVI acabou com a autonomia dos frades franciscanos de Assis, na Itália, considerados liberais demais. Mas a mão de ferro não foi muito além disso. "A expectativa geral era que houvesse uma caça às bruxas ou algo assim. Mas o papa não criou grandes choques até agora", constata o teólogo Jung Mo Sung, professor da Universidade Metodista de São Paulo.

Juan Arias acredita que, para ser eleito, Bento teve de firmar um compromisso com os cardeais liberais: não seria tão severo quanto na época da Doutrina da Fé. Possivelmente tentando se livrar do carimbo de inflexível, o papa aceitou conversar em setembro com o teólogo suíço Hans Kung, um de seus maiores críticos (leia artigo na página A26).

DO POP AO RESERVADO

O alemão Joseph Ratzinger, que completa hoje 80 anos, foi eleito papa no dia 19 de abril do ano passado, por seus colegas cardeais. João Paulo II havia morrido no dia 2 daquele mês, depois de 26 anos de papado e vários meses de sofrimento por causa da saúde debilitada.

Desde que assumiu a Santa Sé, Bento XVI tem procurado homenagear seu carismático antecessor. O mais incisivo dos tributos ocorreu em maio, quando apressou o processo de beatificação de João Paulo II - um dos primeiros passos em direção à santificação. Em outubro, lembrou numa cerimônia que o pontificado do polonês completaria 27 anos naquela data. Dias depois, celebrou o Dia de Finados em frente ao túmulo do antecessor.

Apesar de ambos terem tido uma relação próxima na Santa Sé, Bento é muito diferente de João Paulo na personalidade. Enquanto o polonês aparecia nos jornais e na TV esquiando nos Alpes ou viajando pelas regiões mais remotas do planeta, o alemão é fotografado e filmado praticamente só nas cerimônias da Basílica de São Pedro.

"João Paulo era ator e conhecia bem os meios de comunicação. Aparecia sempre com glamour", afirma o jornalista Juan Arias. "Viajou muito, rompeu a tradição de papas fechados", acrescenta o teólogo Mo Sung.

O último papa fez mais de cem viagens para fora da Itália. Em 1997, no Rio, conquistou os brasileiros ao dizer: "Se Deus é brasileiro, o papa é carioca". Nem os problemas de saúde o detiveram. Em 2004, meses antes de morrer, desembarcou na Suíça numa cadeira de rodas. "Era um agitador, queria fazer muitas coisas antes de morrer", diz Arias.

Bento XVI, por outro lado, fez uma única viagem internacional até agora. Foi à Alemanha, sua terra natal, em agosto, para participar da 20ª Jornada Mundial da Juventude.

Para Mo Sung, a discrição é uma qualidade. "Na sociedade há uma certa ansiedade por shows, artistas e escândalos. Se o papa entrasse nessa lógica, estaria cedendo a uma moda. A Igreja precisa fazer o contraponto, não reproduzir a lógica cultural da sociedade. Bento faz bem em não ser um pop star."

Por ora, a única característica marcante do pontificado de Bento XVI é o continuísmo. Já deixou claro que não vai inovar em questões cruciais da prática católica - o celibato continua obrigatório ao padres, as mulheres não chegarão ao sacerdócio e as uniões homossexuais não serão aceitas, assim como o aborto e as pesquisas científicas com embriões. Algo natural, já que o cardeal Ratzinger foi um dos pilares do papado de João Paulo II na defesa dessas questões. Até sua primeira encíclica, Deus É Amor, tem a influência do antecessor - parte do texto foi redigida pelo papa polonês.

"Bento XVI ainda não está procurando estabelecer grandes idéias", diz o padre Érico Hammes, professor de Teologia da PUC do Rio Grande do Sul. "Está discretamente se colocando a par do que acontece."