Título: Farmácia Popular tem custo inviável
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Nacional, p. A10

Programa subsidia remédio em farmácia particular, que custa até 18 vezes o valor da unidade comprada em licitação

Lançada com entusiasmo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a expansão do programa Farmácia Popular é uma idéia antiga e só não foi colocada em prática pelos governos anteriores por uma razão: não tem como se sustentar. A medida, que deverá ser usada na campanha do presidente Lula à reeleição, prevê a venda de alguns medicamentos para hipertensão e diabetes com desconto de 90% em farmácias particulares. O problema é que, para cada unidade de remédio vendido nas farmácias, o governo vai pagar até 18 vezes o valor que ele mesmo desembolsa em licitações para abastecer os postos de distribuição pública. Em outras palavras: vai pagar mais para que a população possa comprar remédios que teria de graça.

Os exemplos são vários. O Captopril, usado para combater a hipertensão, por exemplo, custou na última licitação do governo R$ 0,02 por unidade. Agora, no reembolso que o ministério fará para as farmácias, a unidade do mesmo remédio sairá por R$ 0,37. O comprador, por sua vez, pagará o restante já no momento da compra: R$ 0,04 por unidade.

"Em princípio, a idéia do reembolso é boa. Na época, até pensei em defendê-la. Mas é extremamente cara. Só pessoas muito otimistas podem acreditar que o programa será duradouro", avalia o sanitarista Gastão Wagner, que durante dois anos foi secretário-executivo do Ministério da Saúde.

Quando o tucano José Serra era ministro, a idéia também foi cogitada. Mas, segundo um dos integrantes de sua equipe, foi logo colocada de lado. Esse auxiliar de Serra conta que uma das preocupações, na época, era prever o impacto de tal medida a médio prazo. "O receio era que o financiamento da compra mobilizasse muitos recursos e comprometesse outras áreas importantes de saúde", destacou.

Dirceu Barbano, principal responsável pelo Farmácia Popular, afirma que os gastos são perfeitamente compatíveis. E diz considerar natural a diferença de investimento entre esse projeto e a compra por meio de licitação. "Essa diferença é significativa somente à primeira vista", garante.

Especialistas são unânimes em dizer que de início o programa tem tudo para agradar à população. Principalmente a classe média, que será a maior beneficiada. A expansão também já rendeu elogios da rede de farmácias e de fabricantes de medicamentos. Recém-lançada a segunda etapa do projeto, a Febrafarma, entidade que reúne produtores de remédios, divulgou uma nota elogiando a iniciativa.

Vera Valente, da Pró-Genéricos, que reúne fabricantes desse tipo de medicamento, também aplaudiu a mudança: "O programa agora tem boas chances de cumprir sua meta, que é facilitar o acesso da população a remédios."

A reação é bem diferente da demonstrada na primeira etapa do programa, que prevê o funcionamento de farmácias em prédios públicos, a preços bem mais baixos e com remédios produzidos por laboratórios oficiais. Desde o início, essa primeira fase do programa foi um exemplo de unanimidade: foi duramente criticada tanto por especialistas como por políticos, setores produtivos e até técnicos do governo - nesse último caso, no entanto, as queixas eram feitas em caráter reservado.

A resistência era tamanha que o programa demorou a decolar. Somente em junho de 2004 a primeira farmácia foi inaugurada. Promessa de campanha de Lula, o Farmácia Popular era uma idéia do marqueteiro Duda Mendonça, que o presidente sempre fez questão de defender. Para muitos, até com teimosia. O desempenho abaixo do desejado pode ser visto atualmente: a poucos meses do fim de governo, existem em funcionamento no País apenas 129 farmácias populares.

"Há uma distorção básica: remédios produzidos em laboratórios públicos não poderiam ser vendidos", afirma Vera Valente. Mas há outros problemas. Pequenos municípios não têm interesse em montar tais farmácias, principalmente porque têm de arcar com salário dos funcionários. "Não há nada a ganhar, sobretudo com os limites de responsabilidade fiscal", observa Wagner.

O receio maior de especialistas, no entanto, começa a se concretizar. As farmácias populares da primeira fase começaram a ser o melhor recurso para a população que usa o serviço público de saúde e não encontra gratuitamente os medicamentos. Ao perceber que não há remédio no posto, eles acabam recorrendo à farmácia popular.

O Estado visitou uma unidade instalada na cidade-satélite de Sobradinho. Dos seis clientes que entraram na loja, cinco exibiam um receituário do posto de saúde. "Dos males, o menor", resumiu o autônomo Camilo Soares de Melo. Aos 39 anos, de uma família de hipertensos, Camilo conta que primeiro vai ao posto de saúde. "Mas a coisa mais difícil é ter remédio lá, seja para mim, seja para minha mãe", disse.

Há casos em que o próprio médico do posto de saúde recomenda que o paciente vá direto para a farmácia popular. É o caso do aposentado José Maria Ribeiro Lima. "É um direito o remédio de graça, sabemos disso. Mas fico feliz com a mudança. Pelo menos agora não interrompo o tratamento. E nem é tão caro assim", completa Lima, que comprava remédios também para hipertensão.

Levantamento do próprio ministério confirma a distorção. Barbano conta que, dos compradores de farmácias populares, somente 70% usam médicos particulares. O restante, veio do sistema público. "A Farmácia Popular traz um perigo grandioso: ele gera uma condescendência da população, que passa a achar normal pagar por algo que deveria ter gratuitamente", afirma Wagner.

Gilson Carvalho, especialista em saúde pública, é um crítico ferrenho das duas medidas. E observa que não há como o governo cobrar da população por algo que ela já pagou, quando teve seus impostos descontados.