Título: Da Alca para a Alba
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Espaço Aberto, p. A2
A nacionalização do petróleo e do gás na Bolívia trará graves prejuízos para o Brasil e mostra que o populismo e a quebra de contratos continuam sendo a "saída fácil" da América Latina para não enfrentar as reformas necessárias. Os países latino-americanos sucumbem periodicamente à tentação de usar seus vastos recursos naturais com fins políticos. Chávez embarca numa cruzada populista hemisférica, surfando nos preços do petróleo. Kirchner taxa as exportações de grãos em cerca de 20% e proíbe as exportações de carnes para fazer demagogia antiinflacionária. Morales estatiza a Petrobrás. É fácil fazer discursos inflamados em favor da soberania nacional. É fácil identificar "bodes expiatórios" externos - como a Alca, o FMI e as empresas multinacionais - para males internos. Curiosamente, na Bolívia de hoje os "gringos" somos nós, como bem lembrou Miriam Leitão, com a Petrobrás sendo publicamente responsabilizada por sugar os recursos do povo humilde.
Neste novo capítulo da triste história latino-americana, a economia nos ensina ao menos uma lição importante: "There is no free lunch!", ou "não há almoço de graça!" A nacionalização facilmente se converte em gestão incompetente e empreguismo desmesurado. O populismo barato transforma-se rapidamente em crise de produção e investimentos, com inflação acelerada, baixo crescimento e endividamento galopante. As políticas puramente assistencialistas mostrarão seus limites em termos de melhoria de renda e emprego.
O Brasil tem uma lista de contra-exemplos para o populismo. A Embraer, a Vale do Rio Doce e a CSN se tornaram muito mais eficientes depois de privatizadas. Um dos motivos do crescimento do agronegócio brasileiro na última década foi a redução do intervencionismo governamental: o fim do tabelamento de preços, da manipulação de estoques públicos e dos impostos sobre exportações e a desregulamentação dos mercados, com a extinção do IAA, do IBC, etc.
Tenho insistido na necessidade de observarmos o crescimento sustentado do Leste da Ásia, uma região superpopulosa e deficiente em recursos naturais. A despeito das profundas cicatrizes que separam politicamente aqueles países - principalmente Japão, China e Coréia -, a Ásia tem crescido na base de reformas estruturais (segurança jurídica, educação básica, etc.) e uma profunda integração comercial. A partir dos anos 80, o Leste da Ásia desenvolveu o chamado "modelo dos gansos voadores", que é o aproveitamento das sinergias regionais por meio de maciços investimentos cruzados, com destaque para a transferência do poder tecnológico do Japão, via participações minoritárias em empresas de seus vizinhos menos desenvolvidos. Assim, o vôo em cunha foi liderado pelo Japão, seguido de perto pelas chamadas "novas economias industrializadas" (NEIs) - Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura -, depois pelos países mais dinâmicos da Asean - Tailândia, Malásia e Indonésia -, com as Filipinas e a Indochina na rabeira. Mais recentemente, essa formação se alterou com a chegada em grande estilo da China e da Índia. A integração dos países asiáticos ocorre pela internacionalização das firmas e pela transferência de tecnologia orientada para a competição sistêmica no mercado mundial.
Já a tendência atual nas três Américas é a fragmentação política e comercial. Colocamos uma pá de cal na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), depois de mais de 500 reuniões de representantes de 34 nações americanas entre 1994 e 2003. A Alca foi substituída por dois modelos distintos de integração. De um lado, países como EUA, México e Chile lideram a assinatura de dezenas de acordos bilaterais de livre comércio que não seguem mais a lógica geográfica. Trata-se de acordos profundos ligando principalmente os países americanos do Pacífico. Há também acordos recentes de envergadura entre aqueles três países e a União Européia, a China, o Japão, a Coréia e outros players importantes.
Do lado do Atlântico, surge o modelo da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), expressão cunhada por Hugo Chávez e Fidel Castro para um modelo de integração centrado no alinhamento de ideais político-ideológicos. O confronto aberto com o candidato peruano Alan García e o provável desligamento da Venezuela da Comunidade Andina de Nações (CAN), a compra "política" de uma parte da dívida argentina por Chávez e, agora, a nacionalização das reservas de energia da Bolívia são elementos centrais deste novo modelo. Não é difícil prever que as características da Alba serão, cada vez mais, o antiamericanismo, a crescente intervenção do Estado na economia e o protecionismo comercial. O fosso entre um e outro modelo de integração se torna cada vez maior, acabando com o sonho de Lula de criar a Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa).
Como o Brasil vai reagir a este imbróglio? Num momento em que o populismo deixa de ser simples retórica e atinge em cheio nossos interesses comerciais, chama a atenção a frase do ex-chanceler do México Jorge Castañeda no caderno Aliás de 30/4: "O Brasil é um país demasiado grande, demasiado sério, com demasiados interesses e demasiadas responsabilidades para praticar o antiimperialismo. A verdade é que este é um jogo que apenas os pequenos podem se permitir." Atribui-se a De Gaulle a famosa frase: "O Brasil não é um país sério." Mas pelo menos todos os demais elementos da frase de Castañeda são verdadeiros. É hora de fazermos uma reflexão sobre os rumos da nossa inserção internacional. Tempos atrás fomos apontados como uma das potências emergentes do planeta, os chamados BRICs, ao lado da China, Índia e Rússia. Deveríamos observar as bases do crescimento do mundo desenvolvido, do Leste da Ásia e mesmo de alguns países bem próximos, como o Chile. Nas várias siglas que compõem o mundo moderno, agora que a Casa virou um "barraco", é hora de comprovarmos que temos muito mais a aprender com a OCDE, os NEIs e os BRICs do que com a Alba.