Título: Com medo da biologia sintética
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2006, Vida&, p. A19

Formar seres vivos a partir do (quase) zero. Essa é a intenção final de um grupo de cientistas de ponta autodefinidos biólogos sintéticos. Até atingirem o objetivo, eles desmontam e remontam bactérias e vírus em laboratório para entender e experimentar processos, obtendo reações e substâncias que não existem naturalmente.

Essa plasticidade, pelo menos teórica, já causa receio de que a tecnologia possa ser usada com intenções escusas, para formar armas biológicas desconhecidas ou vírus e bactérias superpotentes.

Uma coalizão de 35 entidades ambientalistas e bioéticas divulgou nesta semana uma carta em que pede freio aos biólogos sintéticos. Assinam Amigos da Terra, Greenpeace,Third World Network, GeneWatch e Corporate Watch, entre outras organizações.

"Escrevemos para expressar nossa preocupação sobre o campo da biologia sintética, que se desenvolve rapidamente e está tentando criar formas de vida e sistemas vivos artificiais", dizem. "Por causa do poder e da área potenciais desse campo, discussões e decisões sobre estas tecnologias devem ser colocadas de forma acessível (inclusive fisicamente acessível) em termos locais, nacionais e global."

Eles endereçam a carta aos participantes de um seminário que terminou ontem na Universidade da Califórnia, em Berkeley - um dos berços da biologia sintética. Chamado Synthetic Biology 2.0, ele reuniu alguns dos principais especialistas da área para, no fim, debaterem um sistema de auto-regulação.

"A SB2.0 foi uma conferência científica que também incluiu as discussões sobre biossegurança, percepção de risco e propriedade intelectual, e passos concretos que a comunidade poderia dar", disse ao Estado Tom Kalil, ex-assessor científico do americano Bill Clinton. "Acho que a comunidade científica está se esforçando para tratar das implicações sociais da biologia sintética, tanto dos benefícios quanto dos riscos."

LIBERDADE

Só que é exatamente esse "esforço da comunidade" que é criticado pela coalizão. O grupo afirma que a autogovernança termina atrasando uma regulamentação oficial, o que deixa os cientistas (e as empresas que se utilizam das descobertas) livres demais.

"Isso permite que práticas se tornem correntes e a trajetória da ciência estabelecida, sem um debate público", diz Sue Mayer, da organização britânica GeneWatch. "Os cientistas deveriam concordar em segurar seus experimentos até que tal processo acontecesse.

Para ela, a biologia sintética traz problemas ainda maiores do que uma de suas bases, a engenharia genética e o DNA recombinante - que permitiram aos cientistas tirarem um gene de um organismo e colocarem em outro.

Hoje a técnica é amplamente usada para formar transgênicos, mas suas primeiras promessas causaram medo suficiente para, em 1975, em congresso em Asilomar, também na Califórnia, reunir cientistas para criarem mecanismos de auto-regulações.

Para a coalizão, o encontro então permitiu que o setor crescesse quase sem controle externo. O grupo não quer que o mesmo aconteça agora. "Todo o contexto de um organismo que resta quando o DNA recombinante é usado não existe na biologia sintética. Construir organismos do nada exigirá um processo de tentativa e erro ainda maior."

Para o biólogo e colunista do Estado Fernando Reinach, a preocupação não é real. O primeiro motivo é que os organismos criados não teriam condições de sobreviver na natureza caso fossem soltos.

O segundo vem da experiência de Asilomar e dos anos de uso da engenharia genética. "Os próprios cientistas formaram 'acordos informais' de respeitar e cuidar dos limites", como no caso da proibição da clonagem reprodutiva, diz ele.

EXPERIÊNCIAS

Enquanto o debate ético começa a esquentar, os biólogos sintéticos continuam a realizar experiências. Várias delas envolvem a bactéria modelo Escherichia coli. O mais novo feito foi divulgado no começo deste mês: um grupo diminuiu o genoma do organismo até o mínimo possível para ele funcionar, com 15% menos DNA.

A E.coli também foi usada, em 2005, como uma "película biológica": uma colônia de bactérias fotossensíveis conseguiu reproduzir imagens, como fotos e um "Olá, mundo" escrito numa placa.

Outra equipe fez com que colônias diferentes do mesmo organismo piscassem como luzes de Natal, reagindo à presença ou não de uma substância química. Mais do que brincadeira, a experiência formou conhecimento para vôos mais altos: um time quer modificar o caminho genético de um precursor da artemisinina, composto usado para combater a malária, para produzir mais remédios e de forma mais barata.