Título: Corrupção explica miséria na cidade mais rica do País
Autor: Sérgio Gobetti
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2006, Nacional, p. A4

Jamile Silva, de 47 anos, improvisou um fogão a lenha em cima de um carrinho de mão, colocado na parte do fundo do seu barraco, construído num mangue com pedaços de madeira velha sobre palafitas. Quando cozinha, a fumaça toma o pequeno cômodo, irritando olhos e garganta. Pior é na cheia da maré, quando a casa é invadida pela água suja que se mistura com a do rio e obriga a desempregada a colocar seus poucos pertences num beliche.

Ela e seus vizinhos moram na parte mais baixa da Rua Jerusalém, do bairro Caípe, de São Francisco do Conde, município baiano que os números do IBGE classificam como o mais rico do Brasil. Do bairro paupérrimo pode-se observar a opulência da área - a 3 quilômetros dali - traduzida pelas torres que queimam gás nas indústrias do ramo petrolífero instaladas no entorno da Refinaria Landulpho Alves, a segunda maior do Brasil, da Petrobrás.

A refinaria é a responsável pela riqueza estatística da cidade - seu faturamento anual médio é de R$ 10 bilhões. Pelos cálculos do IBGE, esse faturamento faz de São Francisco do Conde o município com maior renda per capita do País: R$ 300 mil. Para chegar a esse valor, o instituto divide a riqueza gerada na cidade pelo total de moradores (30 mil).

Por que esse dinheiro não é traduzido em benefícios para a comunidade? A Controladoria-Geral da União (CGU) tem a resposta. Em duas inspeções realizadas em 2003 e 2004, deu à prefeitura de São Francisco do Conde o título de campeã da roubalheira entre todos os municípios fiscalizados no País. Isso explica em grande parte a situação dos favelados da Jerusalém, cujo único "luxo" é a água encanada.

Em contraste com a beleza da Praça da Independência, onde estão prédios históricos e modernos do Conde, além do calçamento em pedras portuguesas e mármore negro, a Jerusalém é só lama, com uma valeta no meio para escorrer o esgoto a céu aberto. Os moradores ganham menos que a maioria da população do município cuja média de rendimento, cerca de R$ 200, já é baixíssima. A moradora mais antiga é a aposentada Isabel Paulo dos Santos, de 62 anos, há 14 no local. "Nenhum (político) ajudou a construir meu barraco, tive que catar a madeira no lixo."

Antes de a CGU constatar irregularidades na prefeitura, o Tribunal de Contas do Município já havia apontado diversas falcatruas. Em 14 anos, entre 1990 e 2004, só foram aprovadas, com ressalvas, as contas de 1994, 2001 e 2004. O dinheiro é abundante, mas escorre pelo ralo da corrupção.

A parcela do ICMS pago pela refinaria Landulpho Alves à prefeitura no ano passado foi de cerca de R$ 115 milhões. A Petrobrás também paga royalties a Conde: conforme a Agência Nacional de Petróleo, este ano já foram R$ 6 milhões. Isso dá uma arrecadação mensal para a prefeitura de cerca de R$ 10 milhões, dinheiro que poderia resolver os problemas da Rua Jerusalém e melhorar a situação de todos os 30 mil habitantes de Conde.

Em fevereiro, o Tribunal Regional Eleitoral cassou o prefeito Antonio Calmon (PFL) e o vice Dário Rego (PSDB) por abuso de poder econômico e político. O Ministério Público Federal também pediu o afastamento. A CGU constatou compras superfaturadas em até 2.000% e outras burlas que causaram um desvio de R$ 22 milhões. A irregularidade mais famosa foi a compra fictícia de 4,3 milhões de unidades de elásticos para amarrar dinheiro e 36 mil pincéis atômicos.