Título: Uma história de duas Ásias
Autor: Stephen S. Roach e Morgan Stanley
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2006, Economia & Negócios, p. B8

A comparação entre China e Índia é fundamental para o debate da Ásia. É também de grande importância para o resto do mundo. No fim das contas, talvez não seja um caso de uma ou outra. Embora a economia chinesa tenha superado a indiana por larga margem nos últimos 15 anos, não há garantias de que o desempenho passado seja uma indicação do que vem pela frente. Cada uma dessas economias dinâmicas vive um momento crítico em seu processo de desenvolvimento - deparando-se com dilemas sobre permanecer no mesmo curso ou mudar de estratégia. O desfecho das opções adotadas terá implicações profundas - não só para os 40% da população mundial que habitam a China e a Índia, mas para o futuro da Ásia e da economia global, num sentido mais amplo.

Em 1991, China e Índia registravam níveis de desenvolvimento econômico parecidos. Hoje, o nível de vida chinês é mais de duas vezes o da Índia, e o PIB per capita da China alcançou US$ 1.700 em 2005, ante pouco mais de US$ 700 na Índia. As duas nações abordaram o desafio do desenvolvimento de maneiras muito diferentes. Para a China, a estratégia tem sido de crescimento puxado pelo setor industrial. A Índia apostou num modelo baseado muito mais nos serviços.

Embora cada uma dessas abordagens tenha suas vantagens e desvantagens, o desempenho impressionante da China na corrida do desenvolvimento nos últimos 15 anos faz dela um modelo muito tentador para ser imitado pelo resto da Ásia.

O contraste entre as duas abordagens é dramático. A participação da indústria no PIB chinês cresceu de 42% a 47% nos últimos 15 anos - mantendo uma enorme distância sobre a participação desse setor na Índia, quase estagnada em 28%, no mesmo período. Por contraste, a participação dos serviços no PIB indiano cresceu de 41% em 1990 para 54% em 2005 - muito mais do que o desempenho moroso dos serviços chineses, que passaram de 31% do PIB em 1990 para 40% em 2005.

O caráter macro da China combina perfeitamente com sua dinâmica de crescimento puxada pela indústria. Valendo-se de uma alta taxa de poupança doméstica, um afluxo imenso de investimento direto estrangeiro (FDI, na sigla em inglês) e grandes esforços na área da infra-estrutura, o crescimento econômico chinês é alimentado cada vez mais pela exportação e o investimento fixo. Coletivamente, esses dois setores respondem hoje por mais de 75% do PIB da China e ainda estão crescendo numa taxa próxima de 30% atualmente.

A história macro da Índia é a imagem espelhada do caso chinês em muitos aspectos importantes. Limitada por uma baixa taxa de poupança, um afluxo limitado de FDI e uma infra-estrutura dolorosamente negligenciada, a Índia se voltou para um setor de serviços fragmentado como sustentáculo de seu crescimento econômico.

O caráter de mão-de-obra intensiva dos serviços proporcionou sustentação para a nova classe média emergente da Índia - elemento chave para a recuperação da Índia apoiada no consumo. Uma conseqüência disso é que o consumo privado responde hoje por 61% do PIB indiano - superando em muito os 40% da China. A contribuição para o crescimento dos setores de investimento e exportação da Índia empalidece na comparação com a China.

IMITAÇÃO

É interessante notar que no momento em que as duas maiores economias da Ásia em desenvolvimento olham para o futuro, elas o fazem procurando se imitar mutuamente. A China está hoje muito centrada em reequilibrar a dinâmica do seu crescimento - afastando-se de exportação e investimento e tentando se aproximar de um modelo puxado pelo consumo ao estilo indiano. Isso acontece mais por necessidade que por opção.

A continuação do crescimento das exportações é uma receita para o protecionismo, enquanto impulsionar uma orgia já excessiva de investimentos traz ameaças de capacidade ociosa e deflação. Ao mesmo tempo, a China também aspira a se equiparar à Índia no progresso das reformas. A Índia abriga hoje mais de 15 companhias de classe mundial, mercados de capitais bem desenvolvidos, um sistema bancário moderno e um império da lei profundamente enraizado. A China perde em todos esses quesitos e quer muito avançar nessas direções. A China também procura implementar uma expansão dos serviços de mão-de-obra intensiva ao estilo indiano na tentativa de garantir emprego e renda para seu nascente setor de consumo. Entretanto, como as dispensas maciças decorrentes das reformas nas empresas estatais exigem que se mantenham poupanças expressivas, a China poderá encontrar dificuldade para estabelecer uma ampla cultura de consumo.

Ao mesmo tempo, a Índia aspira alcançar o progresso da China na área industrial. A liderança política da Índia está convencida de que o setor industrial é a resposta para o desemprego nas zonas rurais empobrecidas. Sempre que vou à Índia, travo o mesmo debate com políticos e formuladores de políticas. Tomo o partido de que o viés de mão-de-obra intensiva inerente às plataformas industriais globais de capital intensivo dá poucas esperanças para o emprego indiano. Observei isto de primeira mão em minhas visitas a empresas industriais indianas - chãos de fábricas tomados mais por robôs do que por trabalhadores humanos.

Os líderes indianos têm uma visão muito diferente da atividade industrial. Eles viram o que a China pode fazer e esperam alcançar o mesmo resultado. No começo deste ano, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, insisti para as altas autoridades indianas exporem as particularidades dessa estratégia pedindo-lhes que identificassem as fontes potenciais da criação de empregos com base na atividade industrial. Sua resposta - alimentos, têxteis e couro - setores com potencial de produção em grande escala que poderiam oferecer oportunidades de emprego lucrativas a trabalhadores rurais relativamente pobres, jovens e com pouca educação. Por contraste, diferentemente dos chineses, a liderança indiana não está tão apaixonada pelo potencial de criação de emprego de serviços com mão-de-obra intensiva. Em particular, elas assinalam que os serviços relacionados com tecnologia da informação (TI) - a jóia da coroa da "nova economia" da Índia - oferece empregos principalmente à elite graduada das prestigiosas instituições de educação superior da Índia.

O que emerge desse debate é que tanto a China como a Índia estão em pontos de inflexão importantes de suas experiências de desenvolvimento.

PROBLEMAS

Ambas estão muito concentradas em ampliar suas bases de sustentação econômica. A China deseja avançar mais para os serviços e estabelecer uma dinâmica de crescimento apoiada no consumo. A Índia deseja ampliar sua base industrial colocando maior ênfase em infra-estrutura e FDI.

Em ambos os casos, os objetivos de crescimento estão focados em resolver o problema da pobreza e do desemprego rurais. Além disso, no caso da China, existe a complicação adicional de sua impressionante transição de propriedade de uma economia estatal para privada.

Tudo isso vem acompanhado de tensões políticas crescentes. Refletindo as preocupações compreensíveis com estabilidade social que surgiram tanto na China como na Índia, a interação entre política e economia tem uma influência nitidamente importante na execução de suas respectivas estratégias de "ampliação.

Há questões igualmente importantes para o resto do mundo: se a Índia está para serviços como a China está para a atividade industrial, que papel fica para o mundo desenvolvido onde os custos são elevados? No futuro, se a India também for bem-sucedida na promoção da produção industrial e a China fizer investidas bem-sucedidas nos serviços, a mesma questão será muito mais desafiadora para as principais economias industriais do mundo.

O protecionismo é o grande risco disso tudo. A globalização favorecida pela TI impulsiona o desenvolvimento econômico tanto na indústria como nos serviços num ritmo alucinante. Além do mais, a conectividade viabilizada pela TI transforma cada vez mais serviços não comercializáveis em comercializáveis - e avançou rapidamente na cadeia de valor e hierarquia ocupacional ao fazê-lo. O resultado é um crescente sentimento de insegurança econômica no mundo desenvolvido que se tornou um pára-raios para ações políticas que, infelizmente, se manifestaram na forma de um retrocesso protecionista cada vez mais preocupante.

Não é esta a experiência que a economia ortodoxa entende. A teoria da globalização em que todos saem ganhando - trabalhadores em países mais pobres enriquecendo com o comércio mas depois se voltando para comprar coisas produzidas em países ricos - simplesmente não funciona.

Isto porque tanto a velocidade como o alcance de uma globalização favorecida pela TI quebraram o molde da teoria clássica de vantagem comparativa. Outrora, era ótimo - embora doloroso - os países ricos diminuírem sua participação de mercado em produtos industriais comercializáveis. Isso porque os trabalhadores com educação superior podiam buscar refúgio e abrigo em serviços não comercializáveis.

Entretanto, com os não comercializáveis se tornando comercializáveis e com o nível educacional e a competência profissional crescendo rapidamente no mundo em desenvolvimento, a segurança da via antiga não existe mais. Infelizmente, isso proporciona tanto a justificativa como a abertura para os protecionistas.

China e Índia representam o futuro da Ásia e muito possivelmente o futuro da economia mundial. Mas ambas precisam agora de um ajuste fino das estratégias de desenvolvimento pela expansão das bases de poder econômico. Se essas correções de percurso forem bem executadas - e há boas razões para crer que isso acontecerá - a China e a Índia poderão desempenhar um papel cada vez mais poderoso na condução da dinâmica de crescimento global nos próximos anos.

Com esse papel, contudo, surgem conseqüências igualmente importantes. A globalização favorecida pela TI introduziu uma complicação imprevista no processo - uma compressão do tempo de desenvolvimento econômico que pegou o mundo industrial afluente de surpresa. Dessa surpresa surge um sentido aumentado de segurança econômica que tem incitado um retrocesso protecionista cada vez mais perigoso. Isso poderá colocar um outro grande desafio à China e à Índia - o de aprender a conviver com as conseqüências de seus êxitos.