Título: Diplomacia movida a petróleo
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Internacional, p. A22

Com óleo em alta, Chávez desbanca Lula como líder esquerdista eintensifica ofensiva externa

Em meio à escalada de sua ofensiva externa, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, foi recebido na semana passada na Europa como o grande líder da esquerda latino-americana - um posto até então ocupado por seu colega brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

No domingo à noite, o prefeito de Londres, Ken Livingstone, o homenageou com um jantar do qual participaram Bianca e Mick Jagger. Na terça-feira, uma multidão de simpatizantes o esperava em Viena, na Áustria, para manifestar "solidariedade com os movimentos sociais latino-americanos".

Não foi a primeira viagem de Chávez ao Velho Continente, mas em nenhuma visita anterior ele recebeu tantas homenagens e manifestações de apoio de políticos e simpatizantes da esquerda européia. "Chávez tem sido recebido com entusiasmo por grupúsculos da ultra-esquerda européia, enquanto Lula não tem hoje a irradiação que tinha há três ou quatro anos, por causa dos escândalos que cercam seu partido e a falta de avanço em alguns de seus projetos, como o combate à fome e a pobreza", analisa para o Estado o ex-chanceler e intelectual mexicano Jorge Castañeda, notório desafeto do venezuelano.

A diplomacia de Chávez prega o fortalecimento do que chama de "eixo sul-sul", que reúna o potencial dos países emergentes. Depois da Europa, a viagem do líder venezuelano se estenderia à Argélia, à Líbia e - antes do retorno a Caracas - à Bolívia de Evo Morales.

O episódio da nacionalização dos recursos de gás e petróleo por Evo, no dia 1º, balançou as fraternas relações Caracas-Brasília. Embora negada oficialmente, a participação de Chávez na decisão boliviana causou "desconforto" no Itamaraty, admitiu o ministro de Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. A estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA) assessorou o governo boliviano no estabelecimento da parcela que as companhias estrangeiras receberiam pela exploração dos recursos bolivianos e Chávez teria assegurado a Evo que técnicos da PDVSA substituiriam os da Petrobrás - a principal afetada pela medida -, caso a estatal brasileira decidisse paralisar suas operações na Bolívia.

Na avaliação da revista The Economist, o caso da Bolívia foi emblemático do triunfo diplomático de Chávez sobre Lula e uma vitória para os planos da Venezuela na região. De acordo com analistas venezuelanos, o governo Chávez considerava que a influência do Brasil - e, em menor medida, da Argentina - sobre a Bolívia desequilibrava o balanço de poder regional.

"Chávez usa o hard power dos petrodólares e o soft power da ideologia revolucionária e antiimperialista para minar a pretensão de liderança de Lula na América Latina", diz o ex-ministro de Relações Exteriores brasileiro Celso Lafer. "Na disputa com o Brasil pelo protagonismo na região, usa a disponibilidade financeira e a atração ideológica que o discurso antiamericano exerce na região."

O episódio boliviano foi apenas o mais recente de uma série de ações de Chávez com o objetivo de ampliar a ascendência da Venezuela na região. Desde sua chegada ao poder, ele fornece petróleo a preços subsidiados para Cuba, ajudando a aliviar o embargo econômico que os EUA impõem há mais de quatro décadas à ilha. Em 2004, se opôs abertamente à presença das tropas de paz da ONU - comandadas pelo Brasil e apoiadas pelos EUA - no Haiti. "A pergunta que a comunidade internacional deve fazer é se ajudar (o líder cubano) Fidel Castro significa ajudar os cubanos. Ajudar Evo Morales é ajudar os bolivianos?", indaga Castañeda.

Na semana passada, o governo da Venezuela arrematou US$ 239 milhões em títulos da dívida pública argentina - a totalidade da emissão feita pelo governo de Néstor Kirchner. Só neste ano, Chávez adquiriu mais de US$ 1 bilhão em bônus. Desde 2005, comprou US$ 2,7 bilhões em títulos argentinos, transformando a Venezuela no principal credor do país. "A compra de bônus por parte de Chávez se soma à crescente dependência energética que a Argentina tem em relação à Venezuela e, obviamente, nos deixa em condições frágeis em negociações bilaterais com Caracas", lamenta o ex-secretário de Planejamento Estratégico argentino Jorge Castro.

Em poucos meses, Chávez comprou brigas com os presidentes Vicente Fox (México), Álvaro Uribe (Colômbia) e Alejandro Toledo (Peru). Atacou candidatos presidenciais em eleições no Chile, na Bolívia e no Peru. Ofereceu petróleo a preços baixos para cidades governadas por sandinistas na Nicarágua, na tentativa de favorecer a candidatura presidencial do esquerdista Daniel Ortega.

O apoio discreto à socialista chilena Michelle Bachelet e o engajamento aberto na campanha do boliviano Evo foram bem-sucedidos. No caso peruano, nem tanto. As ligações entre Chávez e o nacionalista Ollanta Humala e a interferência chavista no processo eleitoral no Peru têm favorecido Alan García - que trocou insultos com o presidente venezuelano. Perdendo votos para o segundo turno do dia 4, Humala se esforça agora para distanciar-se de Chávez. Na Nicarágua, a Justiça eleitoral vetou o acordo entre a Venezuela e os sandinistas.

Montado em seus petrodólares e exibindo um estilo considerado por diplomatas como histriônico e fanfarrão, o líder venezuelano lança seus tentáculos para muito além do Atlântico. Chávez busca ampliar o espaço do país da África até a China, mercado alternativo para sua produção petrolífera. Também se tornou o principal defensor no Ocidente dos interesses de seus sócios na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) - como nos casos da defesa do programa nuclear iraniano e no da oposição à guerra no Iraque.

Cuidadoso com sua imagem, o líder venezuelano busca cativar também a população pobre dos EUA, da Grã-Bretanha e do Leste Europeu, oferecendo gasolina e combustível para calefação a preços baixos. A recepção dessa iniciativa foi boa entre os habitantes dos Estados do sul dos EUA, que se sentiram abandonados pela administração George W. Bush após a passagem do furacão Katrina, no ano passado.

"Não é a primeira vez que a Venezuela tenta projetar-se para o mundo", explica a professora de ciências políticas da Universidade Andrés Bello de Caracas, Maryclen Stelling. "Durante a primeira crise do petróleo, no início dos anos 70, o presidente Carlos Andrés Pérez lançou uma ofensiva de política exterior. Ele doou um navio para os bolivianos, para que fosse usado quando o país recuperasse seu litoral. Mas isso não se compara à atual política externa de Chávez."

Exercer influência sobre a Bolívia era vital para as pretensões geopolíticas chavistas. "Pode-se considerar que a ofensiva diplomática do governo venezuelano se dá em dois níveis", diz a professora. "Um, regional, no qual a Venezuela disputa com o Brasil a liderança do processo de integração da região. O segundo, global, no qual a Venezuela busca mercados alternativos para seus produtos, principalmente o petróleo."