Título: EUA precisam das Nações Unidas
Autor: James Traub
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Internacional, p. A13

A ONU está à beira da morte. O que não é novidade. Ela parece estar sempre prestes a morrer. Desta vez, porém, é o embaixador americano na organização, John Bolton, que se dispõe a desligar o aparelho respiratório. Depois do discurso proferido por um funcionário do primeiro escalão da Secretaria-Geral das Nações Unidas, no dia 6, exigindo um engajamento menos hostil e mais consistente por parte dos EUA, o embaixador americano, furioso, declarou que a instituição ficaria "seriamente prejudicada", a menos que o secretário-geral Kofi Annan, "pessoal e publicamente" repudiasse as observações de seu colega. Annan se recusou.

Já ouvimos essa história antes. Durante o final da década de 90, os conservadores do Congresso, liderados pelo senador Jesse Helms, republicano da Carolina do Norte, prometeram levar a ONU à inanição se ela não se dispusesse a realizar uma longa série de reformas. Em setembro de 2002, o presidente George W. Bush afirmou que a organização seria "irrelevante" se não se unisse aos EUA em sua empreitada no Iraque.

A pergunta: é por que a organização continua em atividade? E a resposta é: os EUA nada podem fazer sem ela.

Passei um período, de junho de 2004 até setembro de 2005, dentro da ONU, escrevendo um livro sobre a organização. O que sempre me impressionou foi o volume de negócios que EUA e ONU realizavam entre si, rotineiramente. Uma crise começava a se armar no Chifre da África? O caso era levado ao Departamento de Estado, pois só os EUA poderiam falar racionalmente tanto com etíopes como com eritreus.

E as necessidades eram de ambas as partes. Em dezembro de 2004, com a imprensa de direita pedindo a cabeça de Annan, por causa do escândalo dos acordos com o Iraque envolvendo troca de petróleo por comida, Condoleezza Rice, na época secretária de Estado indicada, encontrou-se com Annan para agradecer profundamente o fato de a ONU ter organizado uma força de manutenção da paz no Haiti e para operar durante as eleições no Iraque. Nenhuma das duas missões podia ser realizada pela própria Casa Branca.

E foi exatamente esse o ponto sublinhado pelo vice-secretário-geral Mark Malloch Brown em seu famigerado discurso. Brown, que no último ano vinha sendo tremendamente maltratado dentro da organização por defender o ponto de vista de Washington, acusou a Casa Branca - mas não apenas a Casa Branca - de praticar uma "diplomacia furtiva" que mantinha o povo americano na ignorância sobre a utilidade permanente da ONU, pois "admitir que um país depende de instituições internacionais não é considerado boa política no plano doméstico".

Esta formulação parece-me bastante correta. Por que Rice se dispôs a agradecer tão generosamente Annan em particular e, em público, silenciou quando a carreira dele estava por um fio? A ONU, como Malloch Brown observou, seria o bode expiatório nutrido pela Fox News e pelos da sua espécie. Por que atacar quem pega o chicote para defender uma organização que não tem um eleitorado próprio ?

Desta vez, a discussão envolve reformas, propostas originalmente pelo próprio Annan, que liberariam a Secretaria-Geral da microadministração dos 191 membros, permitindo que países membros mantivessem administradores responsáveis por seu desempenho. Neste aspecto, os EUA estão totalmente de acordo. Mas, entre os países do Terceiro Mundo, muitos parecem preferir a microadministração e impedem a mudança.

E por que se aferram a isso? Malloch Brown observou que, em parte, é porque há uma visão, cada vez mais generalizada, de que "qualquer coisa que os EUA apóiem deve ter uma agenda secreta, seja para subordinar processos multilaterais aos objetivos de Washington, seja para enfraquecer as instituições". Eu responderia de forma menos indulgente, dizendo que essa visão é usada como pretexto perfeito para o obstrucionismo do Terceiro Mundo.

Na verdade, existe uma divisão bem real e preocupante dentro da ONU, entre países em desenvolvimento e desenvolvidos, que se sobrepõe à divergência sobre a maneira de fazer política de Washington - entre os EUA e qualquer outro país. Naturalmente, os EUA sempre se posicionarão à parte na ONU. Como Madeleine Albright costumava afirmar, "somos uma nação indispensável". No passado, porém, aceitamos limites modestos à nossa liberdade de ação para manter todos incorporados às instituições multilaterais. Agora não. Nós nos agarramos a posições maximalistas, como afirmou Malloch Brown, quando "poderíamos chegar a um meio-termo". Hoje estamos pagando o preço. O processo de reforma se dissolveu em uma confusão medonha, em parte por causa das profundas divergências entre os membros sobre a finalidade da ONU. Contudo, a imagem deprimente dos EUA na opinião pública mundial tem instigado países moderados a agir de forma a agradar seu público, provocando a ira do leão; e, de outro lado, a posição intransigente e ressentida de Washington nessas questões é quase um convite à desconfiança de outros.

Temendo que alguém pensasse que estava apenas brincando, Bolton insinuou que a administração estava disposta a reter uma parte dos valores devidos pelos EUA à organização. Tudo isso porque um funcionário da ONU teve a iniciativa de criticar a Casa Branca? No passado, a secretária de Estado Condoleezza Rice tranqüilamente interveio para amenizar crises provocadas por seu belicoso emissário junto à ONU. Será que desta vez ela agirá da mesma forma? Ou fornecerá a prova definitiva de que Malloch Brow estava certo?

*James Traub é autor do livro 'The Best Intentions: Kofi Annan and the UN in the Era of American World Power', que será publicado em novembro nos EUA. Escreveu este artigo para 'Los Angeles Times'