Título: Do 'nunca antes' ao 'nunca mais'?
Autor: Ilan Goldfajn
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Fortes quedas no mercado financeiro nem sempre indicam mudanças relevantes na economia. Às vezes refletem apenas o efêmero, flutuações momentâneas que esquecemos assim que os preços dos ativos se recuperam. Mas há algo de mais interessante na recente queda nas bolsas e em outros ativos no mundo. Reflete uma incerteza crescente com o desempenho futuro da economia mundial. Como estamos vivendo um período de bonança internacional de intensidade e longevidade não usuais, é natural temer por seu fim.

Para ilustrar as incertezas atuais basta observar que o mais importante banco central do mundo - o Federal Reserve (Fed), dos EUA - simplesmente não sabe se "assovia ou chupa cana". Em economês: o Fed não sabe se continua subindo os juros para combater a inflação ou se se preocupa com os sinais de desaceleração da economia, que já são evidentes. Há que fazer uma escolha: o risco atual é de mais inflação ou de uma desaceleração mais acentuada? Ou serão ambos (estagflação) parte do nosso futuro? Este último cenário é pouco provável. Se, de fato, a desaceleração mais acentuada vier a se confirmar, é improvável que a inflação venha a permanecer alta.

Para piorar, a sensação é de que o piloto sumiu. Ao invés do mágico ex-presidente do banco central Alan Greenspan, agora há que confiar no atual presidente-carne-e-osso Ben Bernanke. E se ele errar? Poderá subir os juros desnecessariamente e afundar a economia americana (e, por conseguinte, o resto do mundo) numa recessão ou, ao contrário, menosprezar os riscos inflacionários e ter de fazer um aperto ainda maior no futuro?

Por enquanto, no aguardo de evidências mais fortes para definir o cenário para um dos lados, no mercado financeiro ainda prevalece o cenário otimista, acredita-se que os juros possam subir, no máximo, até 5,25% nos EUA (apenas 0,25% acima da atual taxa) e que o mais provável seja uma desaceleração mundial suave, prolongando o crescimento atual por mais algum tempo.

Mas é evidente que a incerteza em torno desse cenário aumentou consideravelmente e a expressão em espanhol "yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay" tem ganho força. Na dúvida, o objetivo é reduzir o risco e refugiar-se em ativos menos arriscados. Como conseqüência, as bolsas no mundo caíram desde o início do evento, em 11/5: nos EUA a queda no S&P 500 foi de 3%; no Japão o Nikkei caiu 8%; na Coréia, 10%; no Brasil, 10%; no México, 11%; e na Turquia, 13%. Uma queda, digamos assim, globalizada.

Mas não foram só as bolsas que caíram no mundo. Outros ativos de países emergentes também sofreram. Como o risco é de juros mais altos no mundo e/ou uma desaceleração mundial mais forte, economias emergentes que dependem dos preços das commodities e/ou receberam consideráveis influxos de capital no passado recente (e, portanto, podem sofrer mais com uma volta dos capitais) se tornam mais arriscadas. Como conseqüência, nesse mesmo período a lira turca se depreciou 16%; o real, 9%; e a rupia da Indonésia, 6%.

É claro que o maior ou menor impacto dessa maior aversão global ao risco depende das políticas econômicas de cada país. No Brasil, muito se avançou nos últimos anos (e governos) para tornar o País menos vulnerável aos humores internacionais. Mas é infeliz a coincidência temporal de uma piora no humor internacional com dúvidas crescentes sobre a qualidade da política econômica no Brasil. Há a percepção de que o esforço fiscal diminuiu - de um saldo primário em torno de uma faixa de 5% do PIB para um número em torno de 4% - e existem dúvidas sobre se os reajustes salariais põem em risco o cumprimento até mesmo dessa meta menos ambiciosa. Finalmente, há o receio de que o atual governo não venha a promover as reformas necessárias no ano que vem para que o crescimento de gastos entre numa trajetória sustentável.

O impacto da turbulência depende também da capacidade de reação do governo. Neste sentido, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, deixou a desejar. "Nunca antes" se registrou um ministro da Fazenda declarando estar satisfeito com a perda de valor da sua moeda no meio de uma turbulência, e reclamando da sua queda quando finalmente a moeda se estabiliza. Será que há falta de entendimento de que não há nenhum ganho para o País se o câmbio se depreciar pelo aumento de risco no Brasil? Por outro lado, o Banco Central reagiu bem, administrou a volatilidade cambial a partir da segunda semana da turbulência, ao intervir no mercado vendendo swaps cambiais. Também não deixou sua decisão sobre juros ser determinada pela volatilidade conjuntural recente. É evidente, por outro lado, que na decisão sobre os juros deve ter levado em conta a piora nos fundamentos internacionais e domésticos que essa turbulência está refletindo.

Enquanto isso, a cultura do "nunca antes" se tem espalhado pelo governo. Conquistas como auto-suficiência no petróleo, alto saldo comercial e menor dívida externa, redução da desigualdade e pobreza, crescimento, inflação são todas recordes "nunca antes" vistos. Não importa que essas conquistas façam parte de um processo que depende de esforço de muitos anos e diferentes governos. Nem que a velocidade do avanço dependa da conjuntura internacional, que talvez "nunca antes" tenha tido um período tão longo e favorável a países em desenvolvimento como o Brasil. Não há dúvida que, se o cenário internacional mudar, as conquistas atuais serão cada vez mais difíceis de replicar: neste caso, a fase do "nunca antes" terá terminado melancolicamente. O risco é que, na falta de maiores esforços (inclusive institucionais) e de um rumo claro à frente, migremos nos próximos anos para a fase do "nunca mais".

Ilan Goldfajn, professor da PUC-Rio, é sócio da Gávea Investimentos. E-mail: igoldfajn@gaveainvest.com.br Home page: http://www.econ.puc-rio.br/goldfajn/