Título: 'A reação do governo é inexplicável'
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Economia & Negócios, p. B6

Decisão da Bolívia viola contratos e acordos internacionais, é uma expropriação unilateral, afirma o diplomata

Para o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, ao se apoderar de 51% do capital da Petrobrás na Bolívia, o governo de Evo Morales viola o contrato da estatal brasileira com a estatal boliviana Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e também acordos internacionais. "É uma expropriação unilateral, que está vinculada ao contrato. Isso altera de uma maneira fundamental as condições do contrato", explicou Ricupero, em entrevista ao Estado. Antes de ser ministro no governo Itamar Franco, Ricupero chegou a ocupar a chefia do Departamento Brasil-Bolívia no Itamaraty e conhece especificamente o contrato que foi fechado entre a Petrobrás e a YPFB.

Ricupero se mostrou indignado com a atitude do governo em relação ao episódio e com a posição da Bolívia com a Petrobrás. "A reação do governo brasileiro é totalmente inexplicável. A Petrobrás foi para a Bolívia não como uma empresa privada qualquer, mas como agente do governo brasileiro. Posso testemunhar que a Petrobrás sempre teve muita relutância, ela não queria investir na Bolívia. Não tanto por temer o que aconteceu agora. Mas por que o gás natural iria concorrer com o óleo combustível para as indústrias de São Paulo. É até irônico que a Petrobrás seja apontada à execração pública, porque ela foi dentro de um projeto de cooperação entre os dois governos."

Como é que o sr. avalia o que está ocorrendo com o gás boliviano. O sr. acha que o Brasil está se posicionando bem ou deveria partir para um confronto? O Brasil, desde o início, se posicionou muito mal, e eu não creio que a alternativa seja o confronto. A alternativa é reconhecer que o problema é muito grave, que ele nasce de uma violação por parte do governo boliviano não só do contrato com a Petrobrás, mas de acordos, de tratados, entre o Brasil e a Bolívia e deve fazer valer não só seus interesses legítimos, mas seus direitos que estão especificados nesses tratados e para cuja defesa existe mecanismos jurídicos previstos que não estão sendo acionados. Portanto, eu acho que a reação do governo brasileiro é, ao meu ver, totalmente inexplicável ou somente explicável por uma crença ingênua de que não protestando, calando, sendo complacente, se vai ter melhores resultados do que defendendo os interesses.

O governo tem dado explicações que reconhece, por exemplo, que a Bolívia está agindo em defesa de sua soberania. O que é um erro, é um erro

Não está em jogo a soberania? Nunca esteve. Obviamente quando os governos bolivianos anteriores assinaram com o Brasil vários tratados - não é um só, o primeiro é de 38, o segundo de 58, o terceiro é de 74, e o mais recente é de 92 -, quando eles assinaram esses acordos, um sobre o petróleo e os outros dois sobre o gás, eles o fizeram no exercício de sua soberania; da mesma forma quando delegaram à empresa estatal boliviana a tarefa de contratar a compra e a venda de gás com a Petrobrás, isso também foi feito no exercício da soberania.

O Brasil teria de recorrer a que fórum internacional, a que meios? O contrato da Petrobrás com a YPFB possui uma cláusula que prevê especificamente que no caso de divergência, de discórdia, os dois países primeiro tentem resolver amigavelmente por negociação, por discussão, e se isso não for possível, o assunto deve ser submetido à arbitragem da Associação de Arbitragem de Nova York, utilizando as leis do Estado de Nova York, para evitar conflitos de legislação.

E quem deveria acionar essa arbitragem em Nova York? O governo ou a Petrobrás? A Petrobrás porque o contrato é entre a Petrobrás e a YPFB.

O que o sr. achou da participação de Hugo Chávez na reunião para discutir a relação entre Brasil e Bolívia? Não tem cabimento. É um dos numerosíssimos erros que o Brasil cometeu nesse episódio. E é um erro que deixa pasmo qualquer diplomata com conhecimento da nossa história diplomática, porque nós sempre timbramos no passado em defendermos nós mesmos os nossos interesses. Nós nunca buscamos delegar a defesa de nossos interesses a terceiros.

Os investidores, em relação à América Latina, com essas atitudes do Chávez, e do Evo Morales agora, podem se afastar daqui em conjunto, quer dizer, pode até atingir o Brasil isso? Eu não acredito. O investidor hoje, sobretudo o investidor sério - que é aquele que nós queremos atrair -, é sofisticado, em geral ele sabe bastante sobre cada país em que ele irá investir, e não vai fazer confusão entre nós e os outros. Acredito que no caso da Venezuela ou da Bolívia isso vai afetar muito as possibilidades de investimento, uma vez que esses dois países só têm capacidade de atrair investimentos na área energética. E como eles estão agindo de uma maneira unilateral, é claro que só mesmo os temerários é que poderiam aceitar fazer investimentos. No caso do Brasil eu não acho. Creio que os investidores vão ter pena pela maneira lastimável com que as autoridades estão se comportando, mas quem sabe isso até os estimule, porque devem achar que aqui realmente não há gente competente nem mesmo para defender os interesses pátrios.