Título: Brasil, Bolívia, energia e política
Autor: Flávio Rocha de Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Evo Morales cumpriu uma promessa de campanha: nacionalizou o gás boliviano. As multinacionais que investiram no setor nos últimos anos foram postas conta a parede, com um ultimato em relação aos negócios que, doravante, farão na Bolívia. O decreto foi acompanhado da ocupação militar das instalações dessas companhias, feita para demonstrar a um público externo, mas principalmente a um público interno - elites políticas e econômicas localizadas em Santa Cruz -, que o presidente falava sério e que garantiria, pela força, a execução de suas ordens.

A decisão do presidente Morales alertou o Brasil, a Petrobrás e outros atores relevantes sobre os problemas da prospecção de recursos energéticos em países pobres, com desigualdades sociais alarmantes. Tem sido, todavia, interpretada de maneira errônea. Rapidamente surgiram na imprensa reações caracterizadas por uma compreensão ligeira das situações boliviana, brasileira e mundial ligadas ao gás e ao petróleo.

Em relação ao gás boliviano, há uma compreensão equivocada sobre como os acordos são feitos. Atenta-se apenas para a racionalidade econômica, um dado, sem dúvida, fundamental. O problema está na esfera social e política. A produção de gás não significou, nos últimos anos, uma melhora das condições de vida da imensa massa da população boliviana. Nesse sentido, as alegações quase unânimes - como a de que a Bolívia atirou no próprio pé e que a sua população sentiria os efeitos econômicos na forma de um desemprego crescente - se distanciam da realidade. Segundo dados de organismos internacionais, 70% da população vive abaixo da linha de pobreza. Para esse contingente, tanto faz se a Bolívia segue produzindo gás ou não nas condições atuais. Assim, contratos feitos num setor estratégico como o gás não podem ser pensados do ponto de vista exclusivamente econômico, sem atenção para os aspectos sociais e políticos - aqueles que crêem nisso, ou que nos tentam induzir a essa crença, é que estão atirando nos próprios pés.

Imediatamente ligado à questão dessa massa pobre boliviana está o fato de que, politicamente, o presidente Morales e seus aliados devem procurar cumprir promessas de campanha, sendo a principal delas a diminuição da pobreza. O gás é, nesse contexto, o único produto capaz de gerar as divisas necessárias para essa empreitada em curto prazo. A nacionalização surge como a possibilidade de conjugar um instrumento de pressão e ação política - a própria nacionalização - com o estabelecimento de um controle econômico efetivo em mãos do Estado. Por elas, as empresas multinacionais não concordariam em rever os contratos e aumentar o pagamento pelo gás extraído, pois sua lógica é econômica e orientada para o mercado.

Uma reação do governo brasileiro deve ser levada a efeito, obviamente, de maneira a garantir os interesses nacionais do Brasil. Porém uma política de retaliação econômica dificultaria a única opção possível para resolver esse impasse: a negociação política. Os bolivianos têm os recursos, mas não possuem tecnologia e mercado consumidor para explorar o gás. Isso o Brasil e a Petrobrás têm de sobra. A Bolívia também não tem como girar os capitais ganhos se aumentar o preço do gás com a nacionalização. O Brasil dispõe de uma bem estabelecida rede bancária que pode operar em escala continental e internacional para aplicar esse dinheiro, algo similar ao que aconteceu entre os bancos europeus e norte-americanos e a Opep depois do choque do petróleo em 1973.

Finalmente, compreende-se pouco a questão energética em nível global. A entrada da China e da Índia, bem como o crescimento econômico dos Estados Unidos, empurram para cima o consumo de petróleo e gás. Sobem os preços e a corrida por esses recursos extravasa o aspecto puramente econômico. Os grandes Estados jogam politicamente o peso de seus governos e de sua diplomacia para garantir a sua segurança energética.

A Rússia sabe disso e tratou de nacionalizar a sua produção. Por intermédio da Gazpron, ela utiliza o recurso energético politicamente para pressionar os europeus em temas delicados. Estes, por sua vez, buscam escapar dessas pressões fortalecendo as próprias empresas, como é o caso da E.ON, alemã, ou da GDF e Suez, com controle estatal francês, em contratos de prospecção na Noruega e no Norte da África. A China e a Índia, por seu turno, politicamente, abrem caminho para que suas empresas - estatais e privadas - consigam contratos lucrativos com o petróleo e o gás da Ásia Central e de países africanos, como a Nigéria.

Na América Latina, o Brasil e a Petrobrás devem preparar-se para a hipótese de o panorama da prospecção energética se alterar num "padrão boliviano". No Peru, o candidato Ollanta Humala já prometeu nacionalizar as reservas de gás caso vença as eleições. O Equador recentemente aprovou uma lei que dá ao governo poderes para renegociar contratos com companhias petrolíferas, permitindo ao Estado mais da metade dos ganhos com o petróleo que será vendido a partir de um certo patamar de preços. A Venezuela forçou empresas estrangeiras a firmar joint ventures com a PDVSA na prospecção de seus recursos.

Diante desse quadro regional e mundial, a postura brasileira deve mirar o longo prazo. A maneira como o governo do Brasil resolver o problema boliviano pode posicionar estrategicamente o País e a América do Sul no tabuleiro energético internacional. Não ceder ao imediatismo é a maneira de transformar uma crise em ganho, articulando os interesses mútuos. Não foi isso o que os Estados Unidos fizeram com a Opep em 1973?