Título: O Oriente Médio é um problema europeu
Autor: Timothy Garton Ash
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/07/2006, Internacional, p. A15

Quando e onde esta guerra começou? Pouco depois das nove horas da manhã (hora local) da quarta-feira, 12 de julho, quando militantes do Hezbollah capturaram Ehud Goldwasser e Eldad Regev - reservistas israelenses no último dia de seu turno de serviço - numa ação cruzando a fronteira no norte de Israel? Na sexta-feira, 9 de junho, quando projéteis israelenses mataram pelo menos sete civis palestinos numa praia na Faixa de Gaza? Em janeiro, quando o Hamas venceu as eleições parlamentares palestinas, num triunfo incômodo para uma política americana de apoiar a democratização? Em 1982, quando Israel invadiu o Líbano? Em 1979, com a revolução islâmica no Irã? Em 1948, com a criação do Estado de Israel? Ou que tal a Rússia na primavera de 1881?

Perguntas simples requerem respostas tão complicadas. Mesmo se os fatos básicos são consensuais, cada termo é disputado: militantes, soldados ou terroristas? Apanhados, capturados ou seqüestrados? Cada seleção de fatos implica uma interpretação. E, em histórias tortuosas como esta, cada horror será explicado ou justificado com referência a algum horror precedente:

De tirania em tirania à guerra

De dinastia em dinastia ao ódio

De vilania em vilania à morte

De política em política ao túmulo

... "A canção é sua. Arranjem-na como quiserem", escreve o poeta James Fenton em sua Balada do Imã e do Xá.

Contudo, observando as respostas européias ao atual conflito, quero insistir no direito da Europa de estar entre suas primeiras causas. Os pogroms russos de 1881; a turba francesa entoando "à bas les juifs" enquanto o capitão Dreyfus era despojado de suas dragonas na École Militaire; o anti-semitismo pestilento da Áustria por volta de 1900, que moldou o jovem Adolf Hitler; todo o caminho até o Holocausto dos judeus europeus e as ondas de anti-semitismo que convulsionaram parte da Europa logo depois dele.

Foi essa história de rejeição européia cada vez mais radical, das décadas de 1880 a 1940, que gerou a força motriz do sionismo político, a emigração judaica para a Palestina e a criação do Estado de Israel.

LAR "O que me tornou um sionista foi o caso Dreyfus", disse Theodor Herzl, o pai do sionismo moderno. Se a Europa decidiu que cada nação deveria ter seu próprio Estado - o que significa que não aceitaria nem mesmo judeus emancipados como membros plenos da nação francesa ou alemã - e finalmente se tornou o cenário da tentativa de extermínio de toda a comunidade judaica, então os judeus precisavam ter seu próprio lar nacional em algum outro lugar. Lar - numa definição amada por Isaiah Berlin - é o lugar onde, se você precisar ir para lá, eles têm que recebê-lo.

E os judeus jamais iriam novamente como ovelhas para o matadouro. Como israelenses, eles lutariam pela vida de cada simples semelhante judeu. Os estereótipos do século 19 de Helden alemão e H¿ndler judeu foram invertidos. Os alemães, e com eles a maioria dos burgueses europeus de hoje, se tornaram os eternos mercadores; os judeus, em Israel, os eternos guerreiros.

Evidentemente, este é apenas um fio naquela que talvez seja a mais complicada tapeçaria política do mundo; mas ele é muito importante. Não creio que algum europeu devesse falar ou escrever sobre o atual conflito no Oriente Médio sem mostrar alguma consciência sobre a nossa própria responsabilidade histórica.

Receio que alguns europeus de hoje assim falem e escrevam; e não quero me referir com isso apenas aos alemães de extrema direita que marcharam pela cidade de Verden, na Baixa Saxônia, no sábado retrasado, agitando bandeiras iranianas e entoando "Israel - centro genocida internacional". Refiro-me também a pessoas pensantes da esquerda, contribuintes de blogs e fóruns de discussão do Guardian e outros afins. Enquanto criticamos a maneira como os militares israelenses estão matando civis libaneses e observadores da ONU em nome de resgatar Ehud Goldwasser (e destruir a infra-estrutura militar do Hezbollah), devemos nos lembrar de que tudo isso quase certamente não estaria acontecendo se alguns europeus não tivessem tentado, algumas décadas atrás, remover qualquer um que se chamasse Goldwasser da face da Europa - se não da Terra.

Serei muito claro sobre o que quero dizer. Não decorre dessa terrível história européia que os europeus devam mostrar uma solidariedade acrítica ante tudo que o atual governo de Israel resolva fazer, por mais violento e imprudente que seja. Ao contrário, o verdadeiro amigo é o que se manifesta quando você está cometendo um erro. Não decorre daí que devamos assinar em baixo das mais recentes simplificações perigosas sobre uma "terceira guerra mundial" contra "uma aliança terrorista Irã-Síria-Hezbollah-Hamas" (segundo o político republicano americano Newt Gringrich) ou um "movimento totalitário contínuo" do islamismo político (segundo o parlamentar conservador britânico e jornalista Michael Gove).

Não decorre daí que todo europeu que critique Israel seja um anti-semita disfarçado, como alguns comentaristas nos Estados Unidos tentam deixar implícito. E certamente não decorre daí que nós deveríamos ficar menos atentos ao sofrimento dos árabes, incluindo aí os árabes palestinos que fugiram ou foram expulsos de seus lares quando da fundação do Estado de Israel, e seus descendentes que cresceram em acampamentos de refugiados. A vida de cada simples libanês morto ou ferido por bombardeio israelense vale exatamente o mesmo que a de cada israelense morto ou ferido por ataques com foguetes do Hezbollah.

Decorre daí que os europeus tenham uma obrigação especial de se envolver na tentativa de assegurar um acordo de paz em que o Estado de Israel possa viver dentro de fronteiras seguras ao lado de um Estado palestino viável? Creio que sim. Evidentemente, como os europeus afetaram de uma maneira ou de outra quase todo canto da Terra, um argumento histórico desses poderia, em teoria, nos levar a toda parte - o legado do imperialismo europeu proporcionando uma desculpa moral universal para o neo-imperialismo europeu. Mas a história dos judeus expulsos de seus lares europeus e, por sua vez, expulsando árabes palestinos de sua terra natal é única.

Mesmo que não se aceite esse argumento de responsabilidade moral e histórica, os interesses vitais da Europa estão absolutamente em jogo: petróleo, proliferação nuclear e a reação potencial entre nossas minorias muçulmanas alienadas, para citar apenas três.

Não é tão claro qual deveria ser esse envolvimento. Uma proposta é a de forças européias participarem de uma força multinacional da paz no sul do Líbano, mas isso só faz sentido se forem estabelecidos parâmetros realistas para uma missão clara, factível e finita.

CHAVE

Isso ainda não está à vista. Mesmo um cessar-fogo ainda não está à vista. A conferência de Roma se encerrou na quarta-feira mal conseguindo disfarçar a clara diferença entre os EUA e Israel, de um lado, e a maior parte do restante do mundo, incluindo a União Européia e a ONU, do outro, sobre como se pode chegar a um cessar-fogo.

A verdade é que agora, mais do que nunca, a chave diplomática repousa no engajamento pleno dos EUA, usando sua influência única sobre Israel e negociando o mais diretamente possível com todos os participantes do conflito, por mais indigesto que seja. Até que isso aconteça, a Europa sozinha pouco poderá fazer.

Entretanto, a questão aqui não é apenas mudar as realidades no Oriente Médio. A maneira como os europeus falam e escrevem sobre a posição dos judeus na região à qual os europeus os impeliram é também uma questão de nossa própria autodefinição. Nós deveríamos pesar cada palavra.

* Timothy Garton Ash é historiador britânico TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK