Título: A tragédia esquecida da África
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/07/2006, Internacional, p. A22

As eleições gerais de hoje no Congo, as primeiras em mais de 40 anos, aumentam as esperanças de que, com um governo eleito instalado, esse país destruído pela guerra tenha uma paz real e duradoura e finalmente, depois de uma década de miséria e morte, saia da lista das regiões que exigem constante assistência humanitária.

Mas será que o Congo - que, fora alguns surtos de violência, atravessa um período de paz desde a trégua assinada em 2002, que encerrou a guerra civil - ocupava o lugar devido naquela lista? A extensão da tragédia que subjugou o povo congolês teve atenção proporcional? Infelizmente, a resposta é não. A ignorância sobre a situação calamitosa do Congo é quase universal, embora os dados que a refletem, especialmente o principal indicador, a "mortalidade excessiva" - número de mortes acima do considerado normal - sejam estarrecedores. O International Rescue Committee (Comitê Internacional de Socorro), que presta assistência humanitária no Congo desde 1996, realizou quatro levantamentos sobre a mortalidade no país, entre 2000 e 2004.

A conclusão é que, nas zonas mais afetadas, o índice de mortalidade nos anos cobertos pelos estudos (1998 a 2004) ultrapassou em quase 4 milhões de mortes o número considerado "normal" para a África Subsaariana. O que mostra que a crise no Congo foi a mais letal já vista desde o fim da 2ª Guerra Mundial, superando o número de mortes registradas na Bósnia, Kosovo, Darfur e até mesmo as decorrentes do tsunami no sul da Ásia. No entanto, na maior parte, as mortes no Congo passaram despercebidas. Talvez por causa da sua natureza. Numa época em que a mídia privilegia o fato instantâneo, o que desperta mais atenção são as mortes violentas, não as mortes por doença. Num levantamento mais recente, verificamos que apenas 2% das mortes resultaram de conflitos locais. O restante foi conseqüência de doenças que poderiam ser prevenidas e tratadas facilmente, mas acabam sendo devastadoras - decorrentes da fome.

As equipes do International Rescue Comittee receberam informações de que as mortes "em excesso" resultavam principalmente de febre (sobretudo a provocada pela malária), diarréia, desnutrição ou problemas respiratórios. Praticamente metade das vítimas eram crianças menores de 5 anos, que não receberam quase nenhuma atenção. O desaparecimento de 4 milhões de congoleses está bem documentado (o estudo foi publicado no jornal médico britânico Lancet), mas, por ser considerado um fato apolítico e nada bombástico, não é interessante para a televisão. E isso é ainda mais lamentável, porque o estudo mostrou também que o número de mortes diminuía abruptamente quando a segurança era garantida. Em áreas de contínua violência o índice de mortes era 76% maior do que nas regiões mais estáveis. Por exemplo, em 2004 a chegada das forças de paz das Nações Unidos à cidade de Kisangani teve um efeito impressionante: uma queda de 6,2 mortes para 1,4 morte por mês para cada grupo de mil habitantes.

Como o Congo começou a despertar um pouco mais de interesse por causa destas eleições, o IRC fez mais uma tentativa para ver se a resposta internacional era proporcional às necessidades identificadas. Embora determinar quais as mortes que recebem mais atenção seja um exercício macabro, ele é também revelador. Investigamos como a mortalidade desencadeia três tipos de resposta - ajuda humanitária, forças de paz e cobertura jornalística - e comparamos os resultados do Congo com outros desastres humanos. Em cada categoria, apesar de uma taxa de mortalidade muito mais alta, o Congo recebeu bem menos atenção. Segundo um projeto bipartidário pendente no Senado dos EUA, no próximo ano fiscal o Congo receberia o equivalente a US$ 52 milhões em assistência humanitária. O projeto recomenda intensificar os esforços de paz da ONU e destacar um enviado especial dos EUA para a região dos Grandes Lagos, na África, que abrange o Congo. Esse projeto, uma tentativa de concentrar dinheiro, forças de paz e atenção da mídia para essa nação sofredora, ainda não chegou ao plenário para votação. As respostas a uma crise como a do Congo estão sempre ligadas. Quando há boa cobertura da mídia, a ajuda aumenta. Os grande doadores podem pressionar por uma maior presença de forças internacionais de paz para proteger os civis e as equipes de assistência humanitária. Por outro lado, a presença dos soldados das Nações Unidas facilita o trabalho da mídia. Se esses fatores todos forem combinados, será cumprido o objetivo da resposta humanitária, que é o de salvar vidas.

*Richard Brennan (Richard.Brennan@theIRC.org) é médico e diretor da Unidade de Saúde do International Rescue Committee. Anna Husarska (Anna.Husarska@theIRC.org) é assessora de política do comitê. Escreveram este artigo para o jornal 'The Washington Post '