Título: As 'crises' da democracia
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/07/2006, Espaço Aberto, p. A2

Faz meio século, pelo menos, que leio ou ouço a profecia de que a democracia corre o perigo de se extinguir. Em 1950, li Harold Laski, o intelectual mais expressivo do Partido Trabalhista inglês. Ele mesmo se classificava como pessimista e argumentava: o mundo manifestava cada vez mais uma profunda desilusão, a nossa geração perdeu sua escala de valores, o laissez-faire é mais odioso inclusive para os próprios protagonistas que o defendiam, a diferença nas condições econômicas é enorme, a Grã-Bretanha havia enriquecido, mas não sabia como aplicar a riqueza nos alvos próprios, como os de caráter social. Finalmente, ao tratar da decadência das instituições representativas, escreveu que na democracia capitalista o primeiro grande elemento de dificuldade provém do tipo de eleitorado, porque a ascensão do capitalismo democrático requer sufrágio universal, que confere poder político às massas de cidadãos, grande parte dos quais só se preocupa com seus próprios interesses. E no sistema em que o dinheiro se sobrepõe aos interesses públicos não se pode pensar em justiça. Socialista fabiano, a crise que ele via era a democracia capitalista.

Dez anos depois de escrever seu livro, discutia-se, nos colóquios de Berlim, a democracia posta à prova no século 20. Começou por definir que democracia existe se a escolha dos governantes e o exercício da autoridade se fizer de conformidade com uma Constituição, se a concorrência dos partidos e dos homens nas eleições for livre e se houver o respeito pelos vencedores temporários da competição, pelas liberdades pessoais, intelectuais e públicas. Até o ano de 1900 não havia um só país em que essas três condições fossem reais. No ano da realização dos colóquios, mais de cem já existiam em regimes democráticos, porém havia uma dualidade. De um lado, as democracias estáveis e, de outro, as instáveis, que geravam despotismos estáveis. As ameaças à democracia são contextuais, derivadas de agressão externa, ou intrínsecas, decorrentes de problemas internos, entre eles os golpes de Estado.

As ameaças contextuais não as temos, até porque não passam de bufonarias as que poderíamos ter. Uma, de parte do presidente Evo Morales, pois a sua referência desairosa à compra do Acre, pelo Brasil, ¿por um cavalo¿ não ousaria sugerir retomada do Acre, sem represália, ao contrário das expropriações das refinarias da Petrobrás na Bolívia. O outro é o presidente da Venezuela, com sua política armamentista, seus fuzis russos, seus navios e aviões espanhóis. Aparentemente está querendo mostrar-se habilitado a enfrentar os Estados Unidos da América, país do qual diz que pretende atacar a Venezuela e ameaça até matá-lo. Na América do Sul, é impensável que tenha na cabeça de caudilho alguma intenção de ação militar regional, exceto na sua vizinhança, onde já auxilia a guerrilha comunista na Colômbia, que se mantém ativa há mais de 40 anos e, depois do colapso do comunismo, recebe financiamento do narcotráfico, em troca da garantia que lhe dá. Quanto às ameaças intrínsecas, são passadas e possivelmente uma estratégia de intimidação com fins eleitorais, pois o nosso presidente, a despeito de ter vendido a imagem de revolucionário ao participar do Fórum de São Paulo disposto a ¿fazer na América do Sul o que fracassou nos países comunistas do Leste Europeu¿, é hoje respeitado no mundo como esquerda (que ele nunca assumiu) civilizada e confiável.

A democracia indireta implica o fato de o eleitor abrir mão de sua soberania ao escolher um representante que tenha identidade política com ele e por ele, teoricamente, vote como se ele votasse os projetos de lei. Só existe democracia onde há o Parlamento ativo, o que faz as leis com independência. Daí por que se confunde a democracia representativa com o ¿Estado parlamentar¿. É o que deveria existir no Brasil, não fossem duas deformações: o uso e abuso das medidas provisórias pelo presidente e parte do Parlamento que vendeu o voto do eleitor para receber os dinheiros da dupla Delúbio-Marcos Valério. Nos regimes ditatoriais há câmaras de chancela, Parlamentos totalmente obedientes aos déspotas. Pois o temos aqui, em aparência democrática. Só que, em vez da opressão e delação, quem garante a obediência são os falsos empréstimos bancários bilionários que Delúbio inventou e Genoino avalizou sem ler. Vamos renovar a Câmara dos Deputados e um terço do Senado, em outubro. Com quem? Vejo ¿mensaleiros¿ como candidatos. Penso no que será do Brasil com a eleição dos que venderam o voto e voltarão a vender, impunes. Penso nos sanguessugas, dezenas deles, que fizeram emendas para ¿doar¿ ambulâncias a prefeitos e ficaram com a diferença resultante, ora do superfaturamento, ora das viaturas entregues sem os complementos essenciais.

Não há quem discorde de que, em toda a nossa vida republicana, nunca houve tanta corrupção em dois dos três Poderes da República. Cento e trinta parlamentares estão sob investigação de formação de quadrilha, extorsão, estelionato. Serão candidatos em outubro. Os corrompidos pelo mensalão foram quase todos absolvidos, e estão de volta. Marcos Valério, o caixa da compra de votos, em vez de hóspede de cárcere, muda para uma casa de R$ 10 milhões. Com essa lama pútrida, se reeleito, Lula comporá a base parlamentar de sustentação do seu governo. Bela sociedade! O presidente alicia parlamentares importantes, nomeando seus indicados para os Correios, foco original dos escândalos. Garante, assim, a lealdade a ele. Penso no que será da democracia representativa com essa malta no Congresso, associada a um presidente que, na sua cara, em cerimônia no TSE, o presidente nacional da OAB disse que nos falta compostura.

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado