Título: A política ficou irrelevante?
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

Francisco de Oliveira, professor aposentado de Sociologia da USP, desligado do PT, que ajudou a formar, e do PSOL, do qual foi um dos fundadores, transformou-se em crítico ferrenho desses dois partidos. A ousadia de suas censuras ao PT ultrapassa de longe todas as farpas dirigidas pela oposição aos petistas. "O PT pós-Lula pode ter o mesmo destino do peronismo argentino - com a criação de grupos gangsterizados que disputariam o espólio da penetração política e simbólica, a partir de programas sociais, entre os mais pobres" (Folha de S.Paulo, 24/7). Se lembrarmos do assassinato do prefeito Celso Daniel, poderemos concluir que esta previsão não é nada disparatada.

Não poupa também o PSOL, reduzindo-o ao papel de um "Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica, mas sem possibilidades de hegemonia, sem possibilidades, sequer, de pautar a política brasileira". Houve tempo em que o PT pautou a política brasileira, segundo Oliveira. Heloísa Helena não deve passar dos 15% de votos.

A que partido ele se vai filiar agora? A nenhum. Francisco de Oliveira não acredita mais na política, em sua força de transformação. E isso por nenhum motivo como a corrupção, ou coisa parecida. Não, suas razões são bem mais profundas. Oliveira sustenta a tese da irrelevância da política interna, seu esgotamento histórico: "A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade. Qualquer que seja a relação, ela tem que passar pelas relações externas. Isso quebra na espinha a política. Política é escolha. Mais ou menos, todos agora têm que seguir as mesmas regras." Sua entrevista à Folha, conduzida por Fernando de Barros e Silva e Rafael Cariello, deve ser lida com a máxima atenção. Suas opiniões podem ser discutíveis, mas estão sedimentadas por muito estudo e reflexão. Para ele, a irrelevância da política é "incontornável" e entre suas causas estão a "financeirização da economia - que tira a autonomia de decisões dos governos nacionais - e a quebra das identidades de classe e sua representação em partidos políticos - também decorrente das transformações recentes do capitalismo."

Em suma, o governo está amarrado à financeirização do Estado e perdeu sua capacidade de autodeterminação. Ficou submisso as determinações de fora. "Este é o fator principal da irrelevância da política. Todas as relações sociais estão mediadas agora pela relação externa. A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade." Aqui cumpre observar que o compromisso das decisões de Estado com as forças externas não é nenhuma novidade no Brasil. Hoje é o capitalismo financeiro que dá as cartas. Ontem era a geopolítica, a divisão internacional do trabalho, por exemplo, que sujeitavam o governo em todas as decisões importantes. Pressões internacionais sempre existiram e sempre existirão. Cabe ao político, ao estadista, tirar proveito dessas pressões, mediante o senso da virtù (capacidade de decisão) e da fortuna (sorte, oportunidade), como ensinava Maquiavel quando a Itália estava também oprimida pelas grandes potências do seu tempo.

Segundo Oliveira, as lideranças políticas ainda não perceberam a inanidade de suas ações e de suas palavras, ignoram por completo que a política interna se tornou irrelevante.( Lembram o galo de Rostand, certo de que, se não cantasse toda manhã, o sol não nasceria.) A pergunta é: que deveriam fazer os líderes e seus assessores? Retirar-se de cena? Cruzar os braços? A moral coletiva está também em crise, com o alastramento da corrupção sistemática não só na política como em toda a sociedade. E daí? Segue-se que temos de viver desprezando os princípios éticos, só porque estes ficaram "irrelevantes"? E que dizer do direito? A instabilidade jurídica dos últimos tempos debilitou o direito na base. O direito já não proporciona ao cidadão a sólida segurança que é sua razão de ser, a lei ficou "irrelevante". E daí? Segue-se que vamos todos viver à margem do direito, como fora-da-lei?

O diagnóstico de Oliveira sobre a irrelevância da política pode até estar certo. Mas, com perdão da palavra, o buraco é mais embaixo. A medida da política é a opinião pública. Esta é o alimento e a força propulsora da política. Se a opinião pública falha, a política entra em colapso. Ora, a atual irrelevância da política em nosso país se deve, precisamente, à desarticulação da opinião pública. Esta deixou de ser "pública", vencida pelo corporativismo e pelo particularismo. A opinião pública brasileira é hoje uma colcha de retalhos formada por opiniões parciais e setoriais. A opinião pública nos partidos e no Congresso foi seqüestrada pelos lobbies, pela bancada evangélica, pela bancada ruralista e, fora do Congresso, pelo MST, pela Igreja progressista, pelas ONGs mais atuantes e heterogêneas. Em conseqüência, a opinião pública no País perdeu sua força de coesão e coação, está dividida, subdividida e desvirtuada em dezenas de ilhotas separadas entre si. E, como a opinião pública não se impõe, o gato e o rato fazem a festa na casa, e a política se esvazia por falta de irrigação vital. A opinião pública está para a política assim como o sangue para o organismo. Onde a opinião pública se rarefaz, a política perde sua eficácia e sua razão de ser.

É curioso que Oliveira, em nenhum momento fale da opinião pública e sua vinculação com a política. Como também não indica nenhum caminho para restaurar a política institucional. A política não traz a felicidade, mas ela nos pode fazer profundamente infelizes. Um Estado sem controle, divorciado da sociedade, incide na prepotência das leis, dos decretos, dos impostos, da intervenção na vida pessoal do cidadão e nas organizações privadas, transformando a vida num inferno. Por isso temos de proclamar: "Morreu a política? Viva a política." Em tempo: não será na imprensa que se refugia o que resta entre nós de opinião pública? A conferir.