Título: Uma federação contra os jornalistas
Autor: Ethevaldo Siqueira
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) não aprende com os próprios erros. Depois do infeliz projeto do Conselho Federal de Jornalistas, há menos de dois anos, a entidade volta a defender uma atualização ainda mais retrógrada da regulamentação da profissão de jornalista, ignorando críticas e apelos de centenas de jornalistas, líderes e entidades respeitáveis - como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

A nota de protesto da Fenaj contra o veto total do presidente Lula à lei de atualização da regulamentação, na semana passada, é um retrato da entidade: "Os patrões venceram. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva capitulou mais uma vez aos interesses das grandes empresas de comunicação do País ao vetar integralmente o projeto de lei que atualiza as funções da profissão de jornalista."

A verdade é outra: não houve nenhuma vitória de patrões, porque não se trata de luta de classes. Derrota para o País seria a sanção de uma lei absurda como aquela. A nota diz ainda que a atualização da regulamentação profissional é uma reivindicação legítima dos jornalistas. Sim, mas para oxigenar e aprimorar o jornalismo, acabando com o protecionismo jurássico introduzido por um decreto da ditadura, em 1969, época de censura e repressão.

A Fenaj argumenta que sem o diploma obrigatório as empresas contratariam os profissionais menos competentes, para pagar baixos salários. É um raciocínio tão absurdo quanto afirmar que a indústria automobilística prefere contratar operários ou gerentes incapazes.

Sou jornalista há 39 anos e filiado ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo. Concluí o curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), além de outros cursos universitários. Creio, portanto, estar em condições de discutir o tema e contribuir para o debate.

Contrariamente à opinião da Fenaj, a exigência do diploma não valoriza o jornalista. Ao contrário, ameaça a qualidade do jornalismo, pois a maioria desses cursos é ruim ou medíocre. Conheço-os bem, pois fui professor de Jornalismo durante mais de dez anos, na USP e em outras universidades. É claro que há bons cursos de graduação e que podem ser úteis ao futuro jornalista. Mas nem eles devem ser o único caminho para formar jornalistas. E muito menos condição sine qua non para a obtenção do registro profissional e do direito de trabalhar.

Poucas atividades humanas são mais diversificadas e variadas que o jornalismo. Como todo jornalista especializado, sou obrigado a viajar, estudar, freqüentar seminários e ler tudo o que puder para me manter atualizado em minha área. Existem centenas de especialidades diferentes de trabalho e cobertura jornalística, cada uma com suas exigências. Como achar, então, que um único curso profissional básico possa suprir todas essas exigências e, ao mesmo tempo, ser obrigatório para todos?

Outro contra-senso é exigir diploma específico, quando o jornalismo não traz maiores riscos à sociedade, como ocorre com a medicina, que cuida da vida humana, ou da engenharia, que precisa construir prédios seguros, ou da advocacia, que nos ajuda a obter justiça.

A tecnologia está mudando o mundo. E o jornalismo não poderia estar a salvo de grandes transformações. Quando concluí meu curso de Jornalismo, em 1970, a revolução digital estava na infância e a humanidade não conhecia microcomputadores, nem CDs, nem DVDs, nem celulares, nem redes de banda larga, nem a internet. Basta lembrar que o mundo tem hoje mais de 150 milhões de blogs, a maioria dos quais fazendo jornalismo eletrônico, virtual, mas com a mesma natureza do jornalismo tradicional. E os podcasts, que funcionam como uma forma de radiojornalismo na web. Vamos exigir diploma também desses milhares de jornalistas virtuais brasileiros?

No início de 1967, começou a trabalhar comigo, na redação do Estado, um jovem que, como eu, acabava de ingressar na primeira turma do curso de Jornalismo da ECA-USP. Seu nome: Ricardo Kotscho. Repórter de talento, texto magnífico, fluente em alemão, ele não teve paciência para freqüentar o curso de Jornalismo. O diploma não lhe fez nenhuma falta. Como já tinha obtido registro profissional antes da regulamentação, Kotscho fez carreira brilhante e foi, até 2004, assessor especial do presidente Lula.

Quantas pessoas de talento e competentes, como Ricardo Kotscho, não são hoje impedidas de ingressar no jornalismo pela legislação burra, mesmo tendo outros cursos superiores? O jornalismo se transforma, assim, num clube fechado, impedindo a entrada de mais pessoas competentes e talentosas. Nem que sejam ganhadoras do Prêmio Nobel.

Para o trabalho cotidiano de produção de notícias o trabalho jornalístico não exige mais que o domínio de algumas técnicas, ensinadas nos cursos de graduação de Jornalismo, em oito semestres na universidade. Não precisava durar tanto. A rigor, seu conteúdo essencial poderia ser dado em seis meses de bom treinamento on the job.

É claro que apenas treinamento não basta para formar o verdadeiro jornalista e o profissional competente, é preciso experiência de anos, com especialização, cursos de pós-graduação e/ou extensão universitária, num processo de atualização cultural permanente.

Embora seja essa a formação ideal, não acredito que a regulamentação profissional possa nem deva torná-la requisito essencial e obrigatório para o jornalista. Uma abertura razoável seria exigir pelo menos um curso superior combinado com exame de suficiência. A Fenaj não aceita nenhum tipo de provão.

Não podemos permitir que a degradação do nível dos jornalistas comprometa a democracia, pois o jornalismo tem papel relevante na construção e no aprimoramento de uma sociedade livre, bem informada e aberta ao debate de idéias.