Título: A nova desordem multipolar
Autor: Timothy Garton Ash
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/07/2006, Internacional, p. A13

Bem-vindos à nova desordem multipolar mundial. O Estado de Israel está em guerra com o Hezbollah, que é tanto um movimento político no Líbano como uma organização terrorista fora de suas fronteiras. O Estado libanês não controla seu próprio território. O Irã influencia fortemente, mas não controla o Hezbollah. Saindo de seu triunfo na cúpula do G-8 em São Petersburgo, a Rússia tem provavelmente as relações mais estreitas, de todas as potências do G-8, com a Síria (à qual fornece armas) e o Irã. A China também está lá, assim como as principais potências européias - de novo não conseguindo agir como uma união européia. Os EUA possuem o maior poderio militar que o mundo já conheceu e como eles o estão usando? Para retirar seus cidadãos do Líbano. Se a secretária de Estado Condoleezza Rice busca o fim dos combates, ela só o conseguirá por meio de uma complexa diplomacia multilateral.

Portanto, bem-vindos à nova desordem multipolar - e adeus ao momento unipolar da aparentemente indisputável supremacia americana. A hiperpotência! A mega-Roma! Lembram? "Momento" se revela a palavra certa: um breve episódio entre o fim do velho mundo bipolar da Guerra Fria e o início do novo mundo multipolar do século 21. Esta nova multipolaridade é o resultado de pelo menos três tendências. A primeira, e mais familiar, é a ascensão ou revigoramento de outros Estados - China, Índia, Brasil, Rússia como filho pródigo -. cujos recursos energéticos competem com os das potências estabelecidas do Ocidente. A segunda é o poder crescente de atores não-estatais. Estes têm características radicalmente diferentes: variam de movimentos como Hamas, Hezbollah e Al-Qaeda a organizações não-governamentais (ONGs) como Greenpeace, de grandes corporações de energia e empresas farmacêuticas a regiões e religiões.

Uma terceira tendência envolve as mudanças na própria moeda de poder. Os avanços nas tecnologias com potencial violento permitem que grupos muito pequenos de pessoas consigam desafiar Estados poderosos estabelecidos, seja pilotando um avião contra o World Trade Center em Nova York, disparando um míssil contra Haifa, atacando soldados americanos no Iraque, explodindo bombas no metrô de Londres ou espalhando gás sarin no metrô de Tóquio. Os avanços na tecnologia da informação e a mídia globalizada significam que as forças militares mais poderosas da história podem perder uma guerra, não no campo de batalha de poeira e sangue, mas no campo de batalha da opinião pública mundial. Se observarmos a queda vertiginosa da popularidade dos Estados Unidos desde 2002, mapeada pelas pesquisas da Pew Global Attitudes mesmo em países tradicionalmente simpáticos aos americanos, podemos argumentar que é isso que vem acontecendo aos EUA.

O efeito resultante dessas tendências muito disparatadas é reduzir o poder relativo de Estados ocidentais estabelecidos, e, sobretudo, dos EUA. Essa realidade é pouco notada por boa parte do mundo, e obscurecida pela retórica belicosa constante sobre a qual escrevi há duas semanas. O governo Bush tem, de fato, se ajustado a tal realidade no segundo mandato do presidente. Desde 2005, numa abordagem arquitetada por Condoleezza Rice, o governo tem lidado não só com o Irã e a Coréia do Norte (os dois outros membros do "eixo do mal", além do Iraque), como também com a maior parte dos outros desafios com uma diplomacia multilateral - ainda que insistindo sempre que a opção de usar a força continuava na mesa.

Essa abordagem tem sido dificultada pela concentração maciça de tempo e recursos no Iraque e pela relutância em se envolver em negociações diretas, bilaterais, com regimes perigosos como o Irã, mas a política externa americana de 2006 é certamente muito diferente daquela de 2003, quando a guerra do Iraque foi iniciada. A Coréia do Norte testa mísseis capazes de carregar as ogivas nucleares que já teria fabricado. Washington diz: vamos levá-la à ONU! O Hezbollah lança mísseis sobre Israel. Washington diz: chegou a hora da diplomacia! Quando Jacques Chirac falou afetuosamente de multipolaridade, em 2003, ele combinou duas afirmações: 1) O mundo é multipolar; 2) Isto é uma coisa boa. A primeira está se mostrando acertada. A segunda ainda precisa ser confirmada. Para começar, importa muito se esta é uma ordem multipolar ou uma desordem multipolar. A ordem é um alto valor em relações internacionais. Ela impede que muitas pessoas sejam mortas.

Por enquanto, o que temos é uma desordem multipolar, e não está claro que forma poderia ter uma nova ordem multipolar. Historicamente, o surgimento de novas potências disputando posição aumentou as possibilidades de violência. O mesmo aconteceu com a autoridade contestada dentro das fronteiras de Estados.

Nós, internacionalistas liberais, sonhamos com um mundo de Estados democráticos, amantes da paz, respeitadores dos direitos humanos, trabalhando por meio de alianças e organizações internacionais dentro da lei internacional.

Pense muitas vezes no Canadá. Algumas potências emergentes se encaixam nessa visão: Canadá e Austrália, por exemplo, cujos recursos naturais os tornarão mais importantes no futuro, mas também, em grande medida, Índia e Brasil. China e Rússia definitivamente não, nem muitos atores não-estatais que hoje estão estabelecendo o curso da política mundial. Henry Kissinger sugeriu que a geopolítica da Ásia no século 21 poderia se parecer à da Europa no século 19, com grandes potências disputando posição, usando a guerra como continuação da política por outros meios. Mas poderia ser pior.

Poderia ser aquele tipo de rivalidade de grandes potências em escala mundial, mais os terroristas. E corporações. E comunidades religiosas transnacionais. E ONGs internacionais. Nenhuma equivalência moral é sugerida entre esses tipos diferentes de atores, mas o que todos têm em comum é que não se encaixam perfeitamente numa ordem mundial de Estados.

O que estamos testemunhando na fronteira entre Israel e Líbano poderia ser apenas um prelúdio. Quando Tony Blair já houver partido há muito, e a presença americano-britânica no Iraque estiver reduzida a algo insignificante, poderão nos lembrar das primeiras advertências do primeiro-ministro britânico - empregadas infelizmente para a guerra do Iraque - sobre o perigo da união de armas de destruição em massa, terrorismo e Estados falidos. A proliferação nuclear - a proliferação de armas de destruição em massa em geral - é um dos maiores perigos de nosso tempo. Ela está no topo, ao lado do aquecimento global, e é tão difícil de lidar com ela quanto com este.

Parece-me uma alegação sustentável a de que o perigo de uma guerra nuclear é hoje maior do que em qualquer outro período desde a crise cubana dos mísseis de 1962, embora a escala de uma possível conflagração fosse ser muito menor. Estaríamos prontos a apostar que não veremos uma arma nuclear disparada por ódio nos próximos dez anos? Eu não. E vocês? Portanto, tenham cuidado com o que desejam. Em princípio, a multipolaridade é um avanço em relação à unipolaridade pela mesma razão que é sábio ter uma divisão bem ordenada de poderes dentro de uma democracia. Mas ela só será um avanço se vier como uma versão da ordem liberal - com igual importância para o adjetivo e o substantivo.

Mas, se os acontecimentos destas semanas são um prenúncio das coisas que virão, a nova desordem multipolar do mundo poderá ser, de fato, muito nefasta. E poderíamos até sentir saudades dos velhos dias ruins da supremacia americana.