Título: Ao largo da questão essencial
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2006, Notas e Informações, p. A3

A sensação de déjà vu é inevitável: está no ar mais um capítulo da eterna novela do presidencialismo à brasileira, chamado de coalizão porque é da natureza do sistema eleitoral do País que a sigla do presidente receba uma parcela apenas dos votos que o (re)conduzem ao poder, obrigando-o, para formar o seu governo, a buscar alianças com tantos partidos quantos se dispuserem a fazê-las. Podem mudar as legendas e os nomes, mas o processo é o já visto - e sua característica mais ominosa é o fato de se pôr em marcha sem se deter na questão de fundo: formar governo para o quê? Não é à toa a irrelevância, para não dizer o ridículo, a que ficou reduzido o termo ¿programa de governo¿ - antes, durante e depois das campanhas eleitorais.

Nestes primeiros dias úteis para os políticos desde o desfecho da sucessão, o noticiário proporciona uma imagem desanuviada do que está em jogo para eles, insulados nos seus cálculos de conveniências e movidos por suas ambições. A rotina é de uma monotonia atroz. O PMDB - do qual se poderia dizer, parafraseando Mario de Andrade, que é ¿300, 350¿, com a diferença que é só um na fome de poder - semeia na imprensa o que espera colher no segundo governo Lula, credenciado por ter sido o grande vitorioso de outubro: fez 7 governadores (2 a mais do que em 2002) e 89 deputados federais (15 a mais), embora tenha perdido 3 das 20 cadeiras que detém no Senado.

O multipartido acaba de pôr as cartas na mesa: reivindica, além da presidência das duas casas do Congresso, Ministérios que rendam clientela eleitoral, em regime de porteira fechada (quando a agremiação só não nomeia, e olhe lá, o garçom que serve o cafezinho do ministro). Do Estado de ontem: ¿Além de pastas com uma fatia polpuda do Orçamento, eles querem administrar áreas que lhes permitam projetar nacionalmente a legenda e também atender às bases partidárias - em que se incluem prefeitos sempre ávidos por verbas federais.¿ Vale por um curso de política. De seu lado, o que faz saber o presidente, o dono dos cargos?

Deixa vazar que se arrependeu de desenhar a estrela petista em 19 dos 33 Ministérios com os quais começou a governar em 2003. Nem precisa acrescentar que, em retrospecto, sabe que fez a coisa errada quando renegou os contratos de locação da Esplanada celebrados por seu articulador José Dirceu com a boa gente peemedebista. Mas a mudança parece menor do que se quer fazer crer - menor, bem entendido, do ângulo das justificadas demandas por uma segunda gestão mais competente do que a atual. Em 2002, Lula usou o seu obeso Gabinete para distribuir prêmios de consolação aos companheiros derrotados nas urnas - como Olívio Dutra, candidato preterido pelos gaúchos, contemplado com o Ministério das Cidades.

Agora, nem pensar. Os petistas vencidos que se arranjem. Compensação pela derrota no seu Estado terá, ela sim, a ex-pefelista Roseana Sarney, cujo verdadeiro partido é, foi e será o do sobrenome. Pelo diz-que-diz de Brasília, a filha do ex-presidente e primeiro amigo do atual teria sido sondada para ocupar a Saúde. Peemedebistas de outros clãs torceram o nariz à idéia - não exatamente pela presumível falta de familiaridade da eventual ministra com Ministério dessa importância, ainda mais depois do paradigma da administração Serra, mas ¿porque nem sequer peemedebista ela é¿, como resmungou um descontente. O ponto, nesse e nos demais casos que o tempo trará à luz, não é o falso dilema entre técnicos e políticos.

É o fato de que filiados a partidos com notório saber em suas áreas correm o risco de ser escanteados porque outros nomes, muito menos aptos para a função, se encaixam melhor no quebra-cabeça político em montagem. Sem querer fulanizar o problema, pode-se perguntar, a propósito, se o PMDB não teria um ministeriável para a Saúde de quem se pudesse dizer que está à altura do desafio, fosse qual fosse a sua legenda, ou nenhuma. Além disso, uma coisa é o presidente trocar cargos por apoio, outra é compartilhar da responsabilidade pelo seu preenchimento, outra ainda é fazer esse jogo sem levar em conta projetos e diretrizes de ação. Tudo o que se sabe sobre o traçado do futuro é o moto presidencial do desenvolvimento ¿sem mágica¿. Sobre o nexo indissolúvel entre isso e a qualidade do gasto público, apenas platitudes. O mais é tabu.

Lula parece ignorar que, no regime de reeleição, o segundo mandato começa assim que termina a contagem dos votos.