Título: O mata-burro do câmbio
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2006, Economia, p. B2

O ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Emílio Garófalo (foto) reconhece que as enormes dificuldades com o câmbio começam com um fato inédito: a impressionante abundância de recursos financeiros.

'Nunca se viu o mundo tão cheio de liquidez.' Ele observa que juros de 1% ao ano como o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) praticou de junho de 2003 a junho de 2004 reproduziram nos Estados Unidos as taxas de recuperação pós-guerra, há mais de 60 anos.

E, de fato, o momento é de auge da retranca monetária e, no entanto, os juros estão a apenas 5,25% ao ano nos Estados Unidos e a 3,5% na Europa. Quer dizer, os bancos centrais já não precisam puxar demais pelos juros, como antes, para controlar a inflação.

Isso acontece por duas principais razões: uso intensivo de Tecnologia da Informação (que derrubou os custos de produção e distribuição) e amplo consumo de mercadorias asiáticas (especialmente chinesas) produzidas com mão-de-obra barata que chegam aos mercados a preços que são fração dos então praticados.

Um dos mais importantes efeitos dessa ampla disponibilidade de recursos internacionais sobre o Brasil é a disseminação da arbitragem com juros. Cada vez mais empresas, bancos e comerciantes tiram proveito dos juros muito mais altos aqui do que lá fora.

Garófalo observa que essa operação não se faz só tomando empréstimos a juros baixos lá fora para, em seguida, trazer os dólares para cá, trocá-los no câmbio interno e aplicar os reais daí resultantes no mercado interno.

Ele chama a atenção para o fato de que, nos últimos 12 meses, o fechamento de câmbio de exportação superou os embarques de mercadorias em US$ 3,8 bilhões. Enquanto isso, o fechamento de câmbio de importação foi US$ 4,1 bilhões superior ao desembaraçamento físico de mercadorias nos portos. 'Só aí são quase US$ 8 bilhões extra-oferta.'

'Por que isso acontece?', pergunta. Porque o exportador desconta no banco seus contratos de exportação mesmo antes de produzir a mercadoria a ser exportada. Assim, usa os reais obtidos no Adiantamento de Contrato de Câmbio (ACC), onde paga apenas de 6% a 8% ao ano, e evita tomar dinheiro no banco para capital de giro a 30% ou 50% ao ano.

'Operação de arbitragem também fazem as empresas que importam sardinhas ou vinho para pagar em 12 meses.Vendem rapidamente a mercadoria e, depois, se divertem no mercado financeiro por 12 ou 24 meses. Na prática, não há limites para isso.'

Garófalo adverte que a maior parte das operações de arbitragem com juros não se faz com a Selic, os juros básicos do Banco Central, hoje a 13,75% ao ano, mas com os juros de mercado: 'Imagine um magazine que importe DVDs players para pagar o fornecedor externo em 12 meses. As revendas ao mercado interno acontecem em um mês e o magazine usa o dinheiro obtido com as vendas para girá-lo no Crédito Direto ao Consumidor (vendas a prestação) a seus clientes, no qual recebe dos clientes juros módicos de 100% ao ano.'

Essas operações concorrem para trazer mais dólares para o País e, assim, para valorizar excessivamente o real, o que, por sua vez, tira competitividade a importantes segmentos da produção (especialmente indústria de calçados, têxteis e de móveis).

Por isso, Garófalo sugere que essas operações de arbitragem via comércio exterior sejam coibidas, ou por meio de imposição de encurtamento de prazos para financiamentos externos de comércio exterior ou por criação de linhas de crédito atrelados a dólares faturados com exportações para evitar antecipação de operações de câmbio. Outra sugestão é permitir exportação em reais.

Garófalo foi um dos autores do projeto de reforma do câmbio apresentado pela Fiesp em novembro de 2005 e em boa parte já transformado em lei pelo governo neste ano. Um dos principais objetivos dessa reforma é a redução da burocracia nas operações de câmbio. Paradoxalmente, a maioria das medidas agora sugeridas por Garófalo para conter a arbitragem exigiria mais burocracia e patrulhamento.

O reconhecimento mais importante é que a maior parte dessas operações de arbitragem não se faz com Selic. Se é assim, o Copom pode reduzir os juros básicos a 5% ao ano, mas, se os tais juros de mercado (para desconto de duplicatas, capital de giro e Crédito Direto ao Consumidor) seguirem no atual nível, nada reverterá a tendência ao mergulho do dólar no câmbio interno.

E por que os juros na ponta do tomador de crédito estão onde estão? Porque o spread bancário é o que é; porque a cunha fiscal (impostos) também está no nível em que está; porque o governo gasta demais e precisa tascar impostos... e desembocamos sempre no mesmo mata-burro.