Título: Política externa do governo Lula
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/03/2007, Espaço Aberto, p. A2

Certa feita, perguntaram ao filósofo conservador Julián Marías, discípulo de Ortega y Gasset, se ele era ¿antimarxista¿. O filósofo respondeu que não era e jamais seria ¿antimarxista¿, pois isso significava ser dependente daquilo que pensavam os marxistas.Tinha razão Julián Marías. Ser ¿anti¿ alguma coisa ou alguém implica definir identidades a partir do outro, e não a partir de interesses próprios. Por esse motivo, a política externa brasileira não é e jamais poderá ser antiamericana, ela terá de ser sempre pró-Brasil.

As recentes e contraditórias declarações do embaixador Roberto Abdenur, contudo, ressuscitaram um velho fantasma dos críticos da política externa do governo Lula: o seu suposto ¿antiamericanismo¿. Tal como macarthistas exilados nos trópicos, esses críticos parecem ainda obcecados com a guerra fria e procuram encobrir as notáveis realizações da política externa do governo Lula com o manto difuso e elusivo do ¿antiamericanismo¿.

Mas a facilidade com que esses críticos acusam a nossa política externa de ¿antiamericana¿ contrasta vivamente com a sua dificuldade de apresentar qualquer evidência para corroborar as suas acusações. Compreendemos tal dificuldade. Com efeito, do ponto de vista comercial se deve observar que as exportações brasileiras para os EUA estão evoluindo bem. No primeiro governo Lula, conseguimos para lá exportar mais de US$ 83 bilhões, uma cifra superior em 56,6% ao que foi alcançado no segundo governo FHC (US$ 53 bilhões) e em 126,7% ao que foi exportado no primeiro governo FHC (US$ 36 bilhões). Na realidade, as exportações para os EUA do primeiro governo Lula ficaram próximas da soma das conseguidas ao longo dos dois governos FHC (US$ 90 bilhões). Nada mal para um governo ¿antiamericano¿.

Pode-se contra-argumentar que o crescimento das exportações para os EUA ao longo do primeiro governo Lula (59,1%) foi inferior ao incremento do total de nossas exportações no período (127,8%). É verdade. Porém esse descompasso se deve a fatores econômicos concretos, e não a ideologias ou à falta de empenho do governo brasileiro. É que as exportações brasileiras no período considerado cresceram num ritmo inaudito para os países em desenvolvimento, os quais têm mercados que eram pouco explorados pelo Brasil. Assim, as nossas exportações combinadas para a América Latina, o Oriente Médio, a África e a China cresceram 210% no governo Lula, o que elevou muito o incremento médio do total exportado e demonstrou o acerto da ênfase na cooperação Sul-Sul. Já o aumento das exportações brasileiras para os principais países desenvolvidos, EUA, União Européia e Japão, ainda que tenha sido expressivo, ficou abaixo da média (78%). Não por ¿antiamericanismo¿, ¿antieuropeísmo¿, ¿antiniponismo¿, ¿terceiro-mundismo¿ ou qualquer outro ¿ismo¿, mas sim pelo fato de que tais mercados são mais consolidados e tradicionalmente explorados pelos exportadores brasileiros. Pesou (e pesa) também a pletora de barreiras tarifárias e não-tarifárias que afetam a entrada, nesses mercados, de produtos em que somos bastante competitivos, especialmente os agrícolas. Destaque-se que, no que tange especificamente ao mercado norte-americano, o desempenho das nossas exportações acompanhou o crescimento das importações dos EUA no período (57%), de modo que não se pode falar em ¿perda de espaço¿ do Brasil naquele mercado.

Isso não significa, é claro, que não possamos fazer mais. O Brasil já tinha propôs, em 2003, uma negociação hemisférica centrada no acesso aos mercados, deixando de lado os temas sensíveis (propriedade intelectual, investimentos, compras governamentais, etc.) que inviabilizaram a Alca. Deveríamos aproveitar a visita do presidente Bush para insistir nessa proposta realista e exeqüível.

Já no concernente aos aspectos políticos e diplomáticos, as relações bilaterais Brasil-EUA estão, como bem assinalou o embaixador Abdenur, num patamar excelente. Nicholas Burns, subsecretário de Assuntos Políticos do Departamento de Estado norte-americano, afirmou recentemente que os EUA mantêm com o Brasil ¿relação privilegiada¿, semelhante às mantidas por aquele país com o Japão, a Índia e a União Européia. Temos, de fato, muitos interesses convergentes com os EUA, apesar de divergências notórias, como a relativa à intervenção no Iraque. Entre tais interesses, podemos destacar a luta contra o narcotráfico e o terrorismo, a proteção das florestas tropicais e das espécies ameaçadas, o combate à pirataria e a cooperação na área agrícola. A essa gama ampla de interesses e projetos se somará, agora, a parceria na área dos biocombustíveis, notadamente do etanol e do biodiesel, tema prioritário na agenda de discussão Brasil-EUA nesta visita do presidente Bush ao nosso país. Sem dúvida, podemos e devemos aprimorar ainda mais essa relação bilateral.

Não bastassem a relação privilegiada e os interesses comuns, há também a boa relação pessoal Lula-Bush, que pavimenta os entendimentos mútuos. Do suposto ¿antiamericanismo¿ resta, pois, quase nada. Quiçá a bibliografia sugerida pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, a qual inclui perigosa biografia do Barão do Rio Branco e que tem dificuldades de ser aprovada pelo ubíquo Comitê Brasileiro de Atividades Antiamericanas, composto por saudosistas da miragem frustrada da Alca. Provavelmente também as misteriosas promoções por ¿afinidade ideológica¿, nunca especificadas.

É, convenhamos, muito pouco para acusação tão grave. De fato, essa acusação parece tão distante da realidade que cheira a ideologia. Talvez ¿antibrasileirismo¿.