Título: Doha - carpideiras versus consistência
Autor: Jank, Marcos Sawaya
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2007, Espaço Aberto, p. A2
Toda vez que as negociações comerciais ameaçam dar um pequeno passo adiante, as carpideiras de plantão já desfiam argumentos de forte conteúdo emocional, porém sem nenhuma consistência empírica. Tal é o caso do atual momento das negociações multilaterais de Doha, no qual se busca evitar um final melancólico para a rodada, que teria conseqüências nefastas para a própria sobrevivência da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O que está em jogo nestas negociações é uma abertura recíproca e equilibrada dos setores agrícola, industrial e de serviços no mundo. Dentro da ótica mercantilista que domina estas negociações, o Brasil é ofensivo no primeiro assunto e defensivo nos demais.
As carpideiras defendem a tese de que ¿proteção é fundamental para assegurar a competitividade da indústria¿ e que o Brasil não deveria trocar o seu brilhante futuro em ¿indústria e serviços¿ pelo passado ¿agrícola¿. Afirmam ainda que a pauta exportadora brasileira seria dominada por commodities pouco dinâmicas e ¿retrógradas¿, marca típica do ¿padrão de dependência¿ de países pobres da periferia, que uma maior abertura levaria a uma ¿desindustrialização acelerada¿ e outros argumentos que não resistem a dez minutos de conversa séria.
Primeiro, a definição de ¿agricultura¿ da OMC compreende tudo o que costumamos chamar de agronegócio. Cálculos do Cepea-USP mostram claramente o enorme efeito multiplicador da matriz insumo-produto do agronegócio. O setor agropecuário responde por 30% do agronegócio, sendo os demais 70% compostos por indústrias de máquinas e insumos agrícolas, alimentos e bebidas, fibras, agroenergia e serviços correlatos. Estudo recente do Ipea mostra que o crescimento da agricultura vem ocorrendo graças a elevados aumentos da produtividade total dos fatores (3,9% ao ano nesta década, quase o triplo do valor obtido pelos EUA), destacando-se a crescente expansão no uso de insumos industriais modernos pelo setor.
Vale também lembrar que o Brasil é o terceiro exportador mundial no agronegócio. Os nossos maiores concorrentes são países ricos - União Européia, EUA, Canadá e Austrália. Seria este o padrão de dependência da periferia? As exportações do setor cresceram 19% ao ano desde 2000, puxadas pela crescente demanda asiática. Seria isso ¿baixo dinamismo¿? Além disso, de 30 anos para cá houve expressiva diversificação e agregação de valor na pauta exportadora, ainda que insuficiente ante o potencial do País.
Segundo, não são só as indústrias mais competitivas e os consumidores finais que ganham com a abertura comercial, mas também todos os setores se beneficiariam das importações mais baratas de bens intermediários. Por exemplo, a abertura do setor de bens de capital (máquinas, equipamentos) certamente tornaria mais competitiva nossa indústria de bens de consumo final. Importar mais é fundamental para exportar mais. Não há um único exemplo de país que se tenha desenvolvido como grande potência fechando sua economia. A abertura comercial está na base do desenvolvimento dos países ricos e emergentes.
Felizmente, argumentos puramente emocionais hoje têm vida curta, porque há um grupo cada vez mais consistente de jovens analistas de política comercial que domina os fundamentos econômicos e jurídicos da matéria. Na área de serviços, vale destacar os esforços que vêem sendo liderados por Mario Marconini, na Fecomércio, e por Ricardo Sennes, na Consultoria Prospectiva. Na área de bens industriais, além dos técnicos da Coalizão Empresarial Brasileira - Soraya Rosar, Pedro da Motta Veiga, Sandra Rios, Lucia Maduro -, vale destacar os trabalhos do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp (Derex), sob a liderança de Roberto Giannetti da Fonseca, Carlos Cavalcanti e Diego Bonomo. A Fiesp recebeu Pascal Lamy e cada um dos ministros mais importantes de Doha em longas e difíceis conversas, preparou uma centena de simulações e assinou declarações importantes com entidades empresariais de vários países defendendo uma rodada mais ambiciosa. Na próxima semana, a entidade receberá uma delegação de 12 líderes da National Association of Manufacturers dos EUA para discutir avanços nas negociações industriais da OMC, incluindo a realização de um exercício sobre acordos setoriais que promoveriam uma abertura mais acelerada dos segmentos mais competitivos da indústria e a identificação de oportunidades bilaterais de comércio e investimento.
É verdade que há setores da CNI e da Fiesp que sempre lutarão freneticamente contra qualquer abertura econômica. Porém a Fiesp também é formada por mais de 30 sindicatos com interesses ofensivos: agronegócio, minerais, madeiras, metais, gemas, jóias e outros. Recentemente, o Derex identificou cerca de 450 linhas tarifárias industriais nas quais a indústria teria claros interesses de abertura comercial no exterior.
Particularmente, acho que o Brasil ainda não entendeu corretamente a dinâmica do processo de globalização que está em andamento no mundo. Precisamos abandonar a velha visão autárquica de defesa da auto-suficiência a qualquer preço, que acha as exportações benéficas e as importações maléficas. Com base na análise do grau de abertura (e não na simplista comparação da tarifa nominal), a Funcex e o Ipea divulgaram estudos que mostram que a economia brasileira ainda se situa entre as mais fechadas do mundo e que o Brasil deveria integrar-se mais, reduzindo tarifas de importação, melhorando a infra-estrutura para as exportações e implementando reformas nas políticas públicas que garantam a tão desejada ¿isonomia competitiva¿ em relação aos nossos concorrentes. Neste contexto, a melhor maneira de obter ganhos líquidos de comércio seria por meio de um acordo multilateral que promova uma abertura ampla e recíproca na OMC, e da urgente retomada das negociações regionais e bilaterais, que precisam de menos falação e mais ação.