Título: Os primeiros anos de Yeltsin
Autor: Matlock Jr,, Jack F.
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2007, Internacional, p. A17

Encontrei-me com Boris Yeltsin logo depois de chegar a Moscou, como embaixador dos EUA, em abril de 1987. Ele chefiava o Partido Comunista (PC) em Moscou e, embora tenha se tornado um nome familiar em todo o mundo cinco anos depois, naquela época poucos fora da União Soviética tinham ouvido falar dele. Agora, após sua morte, duas imagens vêm à tona: numa delas, ele é a encarnação da mais importante revolução democrática ocorrida nos últimos 50 anos; em outra, ele é um presidente cheio de si que presidiu a turbulenta, mas incompleta transição da Rússia da era soviética para uma democracia. Mas acho que, para compreender verdadeiramente esse homem, é bom voltar àquele período antes de ele irromper na cena política global.

Naquela época, Yeltsin às vezes ia de metrô para o trabalho, em vez de usar sua limusine com chofer, e aparecia de tempos em tempos em fábricas e lojas para conversar com os empregados. Se, numa loja, as prateleiras estavam vazias (o que era freqüente), Yeltsin entrava sem aviso no depósito dessa loja e, se percebia que o gerente estava armazenando mercadorias para vendê-las no mercado negro, o despedia imediatamente. Ele logo se tornou uma lenda como político do povo que desejava seriamente mudar as coisas.

E então, em novembro de 1987, ele foi repentinamente expulso da liderança do PC, por se queixar de que as reformas não estavam sendo feitas com a rapidez necessária. O erro de seus oponentes foi permitir que ele permanecesse em Moscou - numa posição politicamente sem importância, na qual tramou seu retorno do ostracismo.

Considerando-o um dos observadores mais objetivos da política soviética, continuei a contatá-lo mesmo depois de sua queda; ocasionalmente minha mulher e eu convidávamos Yeltsin e sua mulher, Raina, para um jantar privado. O que rendeu bons dividendos. Depois que, nas eleições de 1989, Yeltsin foi promovido para uma destacada posição nacional, conquistando uma cadeira (com quase 90% dos votos num distrito de Moscou) no novo Congresso dos Deputados do Povo, ele lembrou que eu lhe dera atenção num momento em que os outros o abandonaram, e depois disso sempre tive acesso imediato a ele.

Naturalmente, Yeltsin tinha reputação de ser um grande beberrão, mas nunca o vi bêbado. Ele parecia mais uma pessoa que gostava de beber e não que precisava da bebida. Ficou famoso também pelas suas doenças periódicas; de vez em quando desaparecia da cena pública por uma semana ou duas, reaparecendo depois mais em forma do que nunca. Lembro-me de ter participado de uma recepção de casamento de um dos seus associados, algumas semanas depois de ser noticiado que ele fora submetido a uma delicada cirurgia da coluna - ele chegou à festa animadíssimo e dançou com todas as mulheres presentes. O outro lado desse caráter por vezes cômico era a capacidade rápida de recuperação.

Ele também tinha um senso agudo do valor político dos gestos teatrais, algo que faltava a muitos de seus colegas comunistas. Ficou célebre o fato de ele ter anunciado sua renúncia do PC, em julho de 1990, não convocando uma entrevista coletiva, mas saindo efusivamente de uma reunião do partido, diante das câmeras de TV. Mas essa decisão pode ter sido mais difícil para ele do que parecia.

Alguns dias antes do anúncio, perguntei-lhe num jantar se os rumores de que ele deixaria o partido eram verdadeiros. Ele disse estar pensando nisso, mas não se decidira. Raina, então, inclinou-se para mim e explicou que essa era uma decisão difícil para uma pessoa fora do sistema comunista compreender: ¿Quando sua vida inteira está vinculada a uma organização é muito difícil cortar os laços.¿

Yeltsin foi sempre impulsivo e no final de sua presidência isso o levou a cometer muitas gafes e tomar decisões erradas. Mas, naqueles dias iniciais, seus instintos eram normalmente corretos e, felizmente, o levaram a dar um vigoroso apoio a muitas políticas americanas. Por exemplo, em janeiro de 1991, na noite de um ataque sangrento das forças soviéticas à torre de TV em Vilna, na Lituânia, nós dois assistíamos em Moscou a uma apresentação teatral de apoio aos movimentos de independência na Estônia, Letônia e Lituânia. Quando Yeltsin viu minha mulher e eu, ele afastou sua guarda de segurança e convidou-nos a sentar a seu lado para podermos conversar. Logo depois, parecia que a platéia estava com os olhos voltados para nós e não no palco.

O que conversamos foi sem importância - o simbolismo era o que ele precisava: ele estava liderando cada vez mais a oposição a Mikhail Gorbachev e desejava mostrar que tinha um bom relacionamento com o embaixador americano. Seria difícil recusar seu convite para juntar-me a ele, e eu também tinha um motivo político, uma vez que os EUA tentavam deter uma repressão severa contra os movimentos de independência no Báltico. Na manhã seguinte, agindo como presidente do Soviete Supremo da Rússia (ele ainda não tinha sido eleito presidente russo), Yeltsin instruiu os soldados russos do Exército soviético a rejeitar ordens de agir repressivamente contra esses movimentos de independência. Foi uma ordem ilegal, naturalmente, pois ele não tinha autoridade sobre o Exército - e poderia ter sido acusado de traição -, mas isso mostrou de que lado seu coração estava.

Yeltsin deixou sua marca na história em vários aspectos, nem todos do modo como desejaria. Mas ele foi muito mais do que o bêbado errático e pitoresco da lenda popular. Mesmo quando inspecionava os depósitos das lojas, ele estava se preparando, talvez, para seu papel de estrela na criação de uma Rússia independente da URSS. Eu apenas desejo que seus sucessores sejam tão firmes como ele foi no respeito à independência dos países que outrora foram parte do império soviético.