Título: Brown precisa aprender com os erros de Blair
Autor: Ash, Timothy Garton
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2007, Internacional, p. A20

Todas carreiras políticas terminam em fracasso, mas nem sempre o mesmo fracasso. Neste momento em que Tony Blair está de saída, ele é extremamente impopular em casa, mas muito respeitado no exterior.

Somente 22% dos britânicos que responderam a uma pesquisa do YouGov o consideram confiável, enquanto 59% dizem que ele não melhorou a reputação mundial da Grã-Bretanha. A pergunta é: será que 59% do mundo concordariam? Semanas atrás, usei esta coluna para permitir que Blair desse, com suas próprias palavras, um balanço pessoal de sua política externa na última década.

A julgar por algumas reações furiosas que recebi, até mesmo oferecer a um primeiro-ministro de saída uma audiência cortês é uma espécie de traição intelectual. O dever exclusivo de qualquer comentarista com respeito próprio é interrogar e em seguida acusar Blair - perdão, 'Bliar' (trocadilho com liar, mentiroso) - como se ele fosse uma mistura de Radovan Karadzic, Augusto Pinochet e Adolf Eichmann. Aquela mão ensangüentada não deve ser apertada jamais; aquele sorriso precisa ser apagado de seu rosto para sempre. Como em muitas mesas de jantar em Londres, a virtude pessoal superior de alguém é demonstrada pela veemência irrestrita de sua crítica a Blair. 'Ele não age em meu nome' é tudo que precisa ser dito; ou melhor, gritado.

Na verdade, é mais interessante deixar de gritar por um momento e ouvir, pois o que Blair oferece é um modelo para que se julgue seu histórico. A essência do blairismo em política externa, assim me disse ele, é o intervencionismo liberal. Sua política externa foi uma combinação de poder brando e poder duro, e com o fortalecimento de nossas alianças com os EUA e a União Européia, para fazer frente aos desafios supranacionais de nosso tempo.

Há duas maneiras de responder a isso. Uma é discordar da própria agenda. O intervencionismo liberal, bem se poderia dizer, é uma idéia abjeta. Por que nos metermos para acabar com a matança entre estrangeiros se eles querem fazê-la? Nosso poder europeu, brando, superior e pacífico é demonstrado ao não intervirmos em nenhum lugar, ao mantermos nossas mãos limpas, sem que levante um dedo. E não queremos ficar próximos dos EUA, de qualquer modo (blairófobos da esquerda). Ou da Europa (blairófobos da direita).

A outra resposta é examinar o histórico de Blair à luz de suas próprias metas proclamadas. Se você acredita, como eu, numa intervenção liberal genuína - isto é, numa intervenção para impedir o genocídio ou algum outro comportamento desumano ou ameaçador à vida dentro das fronteiras de outro Estado -, então Kosovo deveria estar com detsaque na coluna dos créditos deste balanço. Neste caso, Blair liderou a organização de uma operação internacional para reverter o genocídio que estava sendo perpetrado por Slobodan Milosevic contra os kosovares albaneses, na maioria muçulmanos. E a comunidade internacional não transformou sua ocupação num desastre sangrento. Kosovo não é nenhuma Suíça, mas está hoje a caminho de se tornar um país europeu. Senhores da guerra, tanto sérvios como kosovares, estão sendo processados em Haia. Para um intervencionista liberal, Kosovo foi o melhor momento de Blair.

As relações da Grã-Bretanha com os Estados Unidos e nossos parceiros na União Européia estão melhores do que estavam em 1997. No contexto europeu, a devolução de poderes à Escócia e ao País de Gales, e o espetáculo admirável do unionista Ian Paisley e do republicano Martin McGuinness começando a governar juntos a Irlanda do Norte, devem ser colocados entre seus créditos. A Grã-Bretanha também está mais forte na Europa e no mundo porque ela tem uma economia relativamente forte, combinada com um Estado de bem-estar social parcialmente reformado. A atração do que italianos, franceses e alemães vêem como blairismo é um elemento do poder britânico brando também.

Apesar de todos os problemas remanescentes, a pergunta é possível: quem está melhor? A Grã-Bretanha após 10 anos de Blair, a França após 12 de Jacques Chirac, a Alemanha após 8 de Gerhard Schroeder, ou os EUA no sétimo ano de George W. Bush?

No lado dos débitos, uma cifra vermelha se destaca: o Iraque. Blair continua insistindo em que a história dará o veredicto sobre o Iraque, mas já podemos dizer com confiança o seguinte: o Iraque é um desastre. Descrevê-lo como um caso de intervencionismo liberal é o maior desserviço que alguém poderia prestar à causa do intervencionismo liberal. Fomos à guerra com um falso pretexto de armas de destruição em massa e sem autoridade apropriada, tanto legal como política. A falta de preparação para as conseqüências prováveis foi uma desgraça. Seria difícil as coisas estarem piores do que estavam no regime de Saddam Hussein, mas elas agora estão. Centenas de milhares de pessoas foram mortas ou mutiladas, e não há nenhum desfecho à vista. Agências de inteligência americanas dizem que o Iraque se tornou um caldo de cultura para uma nova geração de terroristas. As centenas de bilhões de dólares dilapidadas na guerra e na ocupação poderiam ter melhorado as vidas de muitos pobres mundo afora.

Ao retirarmos tropas do Afeganistão quando o trabalho por lá ainda estava pela metade, nós criamos dois fracassos em vez de um possível sucesso. A disputa entre sunitas e xiitas se alastrou pelo mundo muçulmano. A ditadura teocrática do Irã foi extremamente fortalecida. A autoridade moral dos EUA está em farrapos e a Grã-Bretanha foi arrastada para baixo com isso. A intervenção no Iraque alienou muçulmanos por toda parte, incluindo nossos próprios concidadãos. É preciso ir mais longe? Este é o desastre mais retumbante de política externa britânica desde a crise de Suez, em 1956.

TRABALHO DE BASTIDORES

O Iraque também expôs a fraqueza de outra marca da política externa blairista: a tentativa de influenciar a política americana trabalhando privadamente nos corredores do poder em Washington, enquanto evitava qualquer desacordo público. A isso eu chamo de escola Jeeves de diplomacia. Como o mordomo típico nos contos de P. G. Woodhouse, a Grã-Bretanha é impecavelmente leal em público, mas privadamente sussurra a Bertie Wooster (vulgo George W. Bush): ¿Isso será sábio, senhor?¿ Essa atitude fracassou. A Grã-Bretanha sozinha já não é grande o bastante para influenciar a hiperpotência, especialmente porque Washington considera que sempre poderá contar com o apoio britânico.

O que os EUA necessitam é de um amigo grande o bastante para Washington ter de ouvi-lo. Esse amigo só pode ser uma UE forte, falando com uma mesma voz. Esta é a terceira falha-chave na política externa de Blair, uma que ele próprio quase identificou ao falar. Conseguir essa voz européia requer um acordo pleno de Alemanha, França e Grã-Bretanha, mas a política européia da Grã-Bretanha é drasticamente limitada, se não realmente ditada, por sua mídia eurocética. Blair viu o problema com clareza, mas jamais ousou enfrentar os proprietários e editores de jornais não eleitos, dos quais o Novo Trabalhismo tanto dependia.

A motivação deste balanço não é apenas escrever história instantânea; é aprender tanto com os fracassos como com os sucessos. Três lições se destacam. Primeiro, jamais se deveria abusar novamente da bandeira do intervencionismo liberal. Todas as muitas formas pacíficas de intervenção devem ser esgotadas. Para a ação militar em último recurso, precisamos ter uma causa justa, baseada em fatos e não em ficções disfarçadas de informações secretas, e uma autoridade legal, democrática e multilateral apropriada. Segundo, somente uma Europa forte, falando uma única voz, pode ser a parceira estratégica de que os EUA tanto necessitam. Terceiro, para chegar a essa Europa forte, o primeiro-ministro britânico precisa enfrentar os barões da imprensa não eleitos que atualmente ditam a política européia da Grã-Bretanha.

Esperemos que Gordon Brown aprenda as lições certas da história de altos e baixos de Blair.