Título: A diferença do cristianismo
Autor: Kujawski, Gilberto de Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

Como ex-aluno dos Irmãos Maristas, sempre me regozijo com a visita do papa, ainda mais agora na expectativa da canonização de Frei Galvão como o primeiro santo brasileiro. Perguntinha curiosa: por que o Brasil não produz mais santos, à semelhança de outros países católicos, como a Itália, a Espanha e a Irlanda? Ensaio de resposta: talvez porque falta ao caráter brasileiro aquele extremismo e aquela dureza exigidos pela santidade, pelo heroísmo e pela genialidade.

A vinda de Bento XVI ao Brasil enseja uma pequena reflexão sobre o cristianismo. A diferença do cristianismo em relação a outras religiões monoteístas (judaísmo e islamismo) está na universalidade da doutrina cristã. Somente o cristianismo veio para todos os homens, independentemente das distinções de raça ou de cultura. Nos Atos dos Apóstolos vemos os discípulos de Cristo se espalharem pelo mundo, no trabalho ecumênico de evangelização e conversão de todos os povos. Repare bem, evangelização e conversão, sem nenhuma imposição à força, sem bradar ¿crê ou morre¿.

A razão de ser do universalismo cristão está em que o cristianismo passa pela Grécia e por Roma, as matrizes do universalismo na antiguidade. A Grécia criou a teoria, que em grego significa ¿visão¿. A teoria especulativa é uma visão dirigida, que busca a conexão entre as coisas e os fatos. Nada de supérfluo, portanto. Sem ela, nem o conhecimento do mundo nem seu domínio pela técnica seriam possíveis. A teoria parte de uma intuição básica que interpreta o real em sua totalidade. Por exemplo, Pitágoras, ao propor que a essência das coisas são os números e as figuras geométricas. De súbito, o panorama do mundo se ilumina em sua totalidade. Estava dado o primeiro passo para a sólida edificação do conhecimento dali em diante. A teoria funciona como uma volta tática para a conquista da realidade concreta, que, sem ela, nos escaparia. Os evangelhos foram escritos em grego, e a própria palavra ¿evangelho¿ (boa nova) é de origem grega. Quando São Paulo prega que os judeus e o gentio se reconciliam em Cristo e que a mensagem cristã veio para todos os homens, ele está pensando como um grego.

De Roma, por sua vez, o cristianismo herdou o universalismo do direito e do mando fundado em direito. Toda a organização institucional da Igreja Católica é a réplica religiosa da autoridade romana, fiel ao seu universalismo e espírito hierárquico.

Quando o papa abre os braços em Roma, concedendo a bênção ¿urbi et orbi¿ (à cidade e ao mundo), está interpretando, gestualmente, o universalismo cristão, abraçando espiritualmente a totalidade dos povos e das pessoas.

Os inimigos externos do cristianismo são historicamente conhecidos: o judaísmo, os romanos, o Islã, certos ideólogos como os chamados ¿libertinos¿ do século 18, que eram livre-pensadores, e o marxismo. Entretanto, talvez piores que os inimigos externos sejam os que se aliam às ¿infidelidades cristãs ao cristianismo¿, os inimigos internos. Primeiro, a Inquisição, cujo maior erro, segundo Marías, foi querer impor a fé cristã a força e pela violência. ¿Ora, se a fé é uma graça, não pode ser exigida.¿ O segundo exemplo dessa infidelidade foi aquela famosa aliança entre o Trono e o Altar, responsável por atrozes guerras de religião no passado. ¿Cometeram-se atrocidades tomando o nome de Deus em vão, se não em falso.¿

Mas o terceiro desvio, a terceira grande infidelidade dos cristãos ao cristianismo, é bem nosso contemporâneo: a opção preferencial pelos pobres, proclamada pela teologia da libertação como causa santa e irrenunciável. Ora, conforme sugere d. Odilo Scherer (em entrevista à Folha de S.Paulo), a opção por uns implica opção contra outros. A opção preferencial pelos pobres é excludente. Faz de conta que são os pobres os únicos que necessitam do amor cristão. Como se não estivessem em pé de igualdade com os pobres os pecadores, os solitários (os ricos encarcerados em sua riqueza), os enfermos, os velhos, os moribundos. Frei Galvão foi protagonista de um episódio antológico a respeito da piedade universal pregada pelo amor de Cristo. Ao saber que um rico homem estava em sua casa, moribundo e solitário, saiu correndo para ministrar-lhe a extrema unção. Tratava-se de um personagem conhecido na cidade de São Paulo: um notório avarento e agiota, um pecador público, odiado e desprezado por todos. ¿Frei Galvão, porém, o amou com o amor do Pai celeste, que dá chuva e sol a bons e maus...¿ (Frei Carmelo Surian, O.F.M., em sua biografia do santo, Frei Galvão, Ed. Santuário).

As opções preferenciais atentam contra a universalidade da mensagem cristã. Assim como Cristo veio para todos os povos, veio também para todas as condições e classes sociais.

A teologia da libertação insiste em pôr a Igreja a serviço da transformação social e despoja a religião de seu conteúdo sagrado, reduzindo-a a mera militância política, concebendo a pessoa de Cristo como um grande revolucionário. Esta atitude repousa sobre uma confusão conceitual que é a seguinte: pelo fato de ser o homem um ente social da cabeça aos pés, como é inegável, pela língua, pelos usos, pelas crenças da tribo, não significa que sua vida também é social. Minha vida não é social nem pela forma, nem pelo projeto, nem pelo destino a que está reservada. Minha vida é estritamente pessoal, não posso trocá-la por outra e ninguém pode vivê-la em meu lugar. Sou social de alto a baixo, mas sou eu, é minha pessoa, com minha liberdade, que sei o que fazer de toda minha herança social, da mesma forma que sou eu quem decide o que fazer com meu corpo e minha herança genética. Minha pessoa não pode ser seqüestrada pelo social. Por isso assiste toda razão a João Paulo II e a Bento XVI em doutrinar que o sentido de minha vida religiosa é meu encontro pessoal com Deus.