Título: Licenciamento ambiental e interesse nacional
Autor: Kelman, Jerson
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

¿Quem acompanhe o noticiário verá (...) - provavelmente com olhos esbugalhados - o presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica propor que projetos estratégicos considerados prioridade nacional na área de energia (assim definidos pela Presidência da República) sejam eximidos de licenciamento ambiental e enviados por um Conselho de Defesa Nacional à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, para ali serem autorizados.¿ Foi o que afirmou o jornalista Washington Novaes em recente artigo no Estado.

Já havia lido algo semelhante num abaixo-assinado que circula na internet, com a assinatura de dezenas de ONGs. Não dei importância. Mas agora, com a adesão de Novaes ao ¿linchamento¿ virtual, fiquei preocupado. Afinal, trata-se de um respeitável formador de opinião, que em geral apresenta análises bem fundamentadas. Só que, neste caso, o meu prezado Novaes não leu e não gostou.

Esse caso começou em 12 de abril, quando compareci a uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Respondendo a uma pergunta, fiz algumas sugestões de aperfeiçoamentos na legislação que, a meu ver, são necessários para ¿destravar¿ a construção de usinas hidrelétricas.

Minha sugestão consiste em, primeiro, atribuir ao Ibama a responsabilidade de realizar o estudo prévio de impacto ambiental, previsto na Constituição, para os projetos considerados de interesse nacional. Certamente o Ibama será capaz de identificar todas as conseqüências ambientais, na escala local e global, resultantes da decisão de fazer o empreendimento e, também, de não fazê-lo.

Segundo, livrar os dirigentes e técnicos de entidades de licenciamento ambiental da ameaça de processo judicial por decisões administrativas, quando tomadas de boa-fé, com base na melhor informação disponível.

Terceiro, incluir as dimensões econômica e energética no processo de autorização para implantação de projetos de interesse nacional. Como não é razoável esperar que o Ibama tenha competência para avaliar os trade-offs entre vantagens e desvantagens medidas em quatro ¿escalas¿ - ambiental, social, econômica e energética -, por se tratar de processo eminentemente político, e não técnico, é preciso tirar do órgão ambiental a ¿palavra final¿.

O Conselho de Defesa Nacional poderia ser o locus dessa decisão Política, com P maiúsculo. Trata-se de colegiado formado pelo vice-presidente, presidentes da Câmara e do Senado e alguns ministros natos, que pode ser reforçado com a presença dos ministros do Meio Ambiente e de Minas e Energia. Caberia a esse conselho, presidido pelo presidente da República, a responsabilidade pela decisão de incluir um projeto energético de interesse nacional nos leilões para venda de energia. Segundo a legislação vigente, a concessão do empreendimento para empresa pública ou privada, e a conseqüente construção da usina, só ocorre se o candidato a concessionário ganhar a competição ao ofertar a energia mais barata possível ao consumidor.

O novo governo da França acaba de adotar abordagem semelhante, ao concentrar num Ministério a responsabilidade de tratar do desenvolvimento e da preservação ambiental. E a França tem muito a nos ensinar. Lá praticamente todo o potencial hidráulico foi aproveitado, enquanto no Brasil, menos de 30%. Temos de aproveitar esse recurso energético, que é renovável, contribui insignificantemente para o efeito estufa e, em geral, é mais barato do que a energia gerada por usinas nucleares ou térmicas, que queimam combustíveis fósseis e lançam altas quantidades de gás carbônico na atmosfera.

Uma grande usina pode ser de interesse nacional, mesmo se concedida à empresa privada, caso a sua não-materialização ponha em risco a garantia de suprimento de energia ou implique aumento substantivo da tarifa de eletricidade, prejudicando a competitividade do Brasil, diminuindo o ritmo de crescimento do PIB, da criação de empregos e do combate à pobreza.

Em geral, uma usina hidrelétrica causa impactos negativos na escala local, tanto ambientais quanto sociais. Mas pode ser vantajosa na escala global, porque evita a queima de combustíveis fósseis. É preciso decidir examinando as peculiaridades de cada caso. Por exemplo, Balbina, construída nos anos 70 perto de Manaus, inunda cerca de 9 km2 para cada megawatt de potência. Trata-se de uma relação ambientalmente perdulária, que sacrificou grande área florestal em troca de pouca substância energética. No século 21, essa licença ambiental não seria concedida. Já as tão discutidas usinas do Rio Madeira têm a relação entre área inundada e potência cerca de cem vezes mais eficiente do que Balbina. Nesse quesito, pelo menos, deveriam ser aprovadas.

Todavia, a aplicação da legislação ambiental tem tido o indesejável efeito de fazer com que cada potencial hidráulico seja examinado de per si, sem visão de conjunto, com prevalência do interesse local sobre o nacional. Minha proposta visa a reverter essa situação para possibilitar a produção de suficiente energia para o crescimento econômico e a ampliação da oferta de empregos, com impacto socioambiental mínimo. O que é bem diferente de impacto nulo.

Ao contrário do que parece ser o entendimento de Novaes e de algumas ONGs, minha proposta não visa a assegurar um salvo-conduto para construção de qualquer usina hidrelétrica. Em muitos casos, mas não em todos, a construção não será recomendável, por conta de dano ambiental excessivo ou por exigir o reassentamento de significativo contingente populacional.

O desenvolvimento sustentável que todos desejamos também incorpora a produção de energia. E cabe a todos nós apresentar soluções para que o País não seja condenado à estagnação, essa, sim, insustentável. Como cidadão, fiz minha parte. Agora cabe ao Congresso decidir se há algum mérito nas sugestões apresentadas.