Título: Ainda há tempo para ousar
Autor: Dupas, Gilberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil perdeu uma oportunidade de inserção benévola na perversa lógica da economia global a partir de sua abertura econômica. Ainda que necessária, ela foi açodada e sem a retaguarda de um projeto estratégico que minimizasse riscos e capturasse vantagens da fragmentação das cadeias produtivas globais. China, Índia, Coréia do Sul e Chile são as provas de que isso era possível. Países muito diferentes entre si, a partir de um diagnóstico sensato de suas potencialidades e dos espaços de inserção - e utilizando políticas econômicas menos ortodoxas -, conseguiram crescer, de 1990 a 2005, a médias anuais elevadas: China, a 10%; Índia, Coréia do Sul e Chile, próximo de 6%; enquanto o Brasil amargou pouco mais de 2%. A China utilizou múltiplas estratégias, a maioria ao arrepio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), atraiu enorme fluxo de investimentos diretos internacionais e se tornou grande geradora de tecnologia. A Índia cuidou das grandes empresas locais, zelou por seu mercado interno e virou o maior produtor de software do mundo. A Coréia do Sul lidou com a pesada crise asiática do final do século, reformulou seus grandes grupos nacionais, lidera setores de tecnologia de ponta e agora investe pesadamente na China. E até o Chile, apontado como o solitário exemplo de neoliberalismo bem-sucedido na América Latina, teve a prudência de não privatizar o cobre, sua grande fonte de exportações, manteve uma meta de inflação razoavelmente flexível e permanentes controles do capital especulativo. Todos eles praticaram taxas de juros estritamente compatíveis com o mercado internacional. Já o Brasil teve nesses 15 anos crescimento medíocre, perdeu sua condição de grande captador externo de investimentos produtivos (FDI) após as privatizações e, mantendo sempre uma taxa de juros elevadíssima, incentivou as operações especulativas do exterior e o rentismo, em detrimento da aplicação na produção. Os últimos seis anos constituíram um período inédito da economia mundial. O desempenho excepcional da China, com a ajuda da Índia, trouxe a vários países - inclusive ao Brasil - uma importante mudança no perfil da dívida externa e na formação de reservas internacionais. As principais commodities metálicas (níquel, cobre, alumínio, ferro e zinco) tiveram um acréscimo médio nos preços de cerca de 200%; as energéticas (gás, petróleo e carvão), de 100%; e as agrícolas (milho, soja, açúcar e café), de 50%. Com isso Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Peru e Venezuela conseguiram um crescimento superior a 100% em suas exportações, sendo que as reservas internacionais de Argentina, Brasil e Venezuela cresceram cerca de 150% e as de México e Peru, da ordem de 60%. Por conta disso, vários desses países tiveram um crescimento econômico sensivelmente maior que sua média recente, com exceção do Brasil, que continuou a suportar seus 2% a 3%. Porém o boom na demanda mundial de matérias-primas e a fase positiva da economia global não durarão para sempre. Nossas reservas internacionais são inéditas, o que é ótimo para investidores e especuladores internacionais que vêem nisso garantia contra calotes. É o que constrói o tal ¿risco país¿ e o tão desejado investment grade. Mas, quando a virada do ciclo ocorrer, a conta terá de ser paga. A valorização do real, conseqüência direta da avalanche de dólares do saldo comercial e do capital financeiro, para além de ter elevado nossas importações a inacreditáveis US$ 100 bilhões, tem um efeito muito duro na competitividade em setores industriais e de serviços, inclusive os que agregam mais valor e geram empregos de qualidade. E torna a indústria local que sobrou cada vez mais depende de importações com conteúdo tecnológico. Ficamos limitados a crescer basicamente no agronegócio - especialmente no biocombustível -, na construção civil e na demanda de bens duráveis, puxadas pelo alongamento do crédito. Enquanto a economia internacional se mantiver aquecida, isso poderá até permitir PIBs da ordem de 4%, o que não é mau. São alguns espaços importantes de crescimento, especialmente o mercado imobiliário aquecido, porque a inflação baixa permite prazo longo no financiamento e substituição do aluguel pela prestação da casa própria. Mas o fôlego é relativo. O biocombustível agregará pouca tecnologia; o etanol criará uma vasta cultura de cana que eliminará até o bóia-fria, substituído por colheita mecânica para evitar a poluição das queimadas; e o biodiesel fará a soja-alimento competir com a soja-combustível. Finalmente, os juros médios astronômicos dos empréstimos - mais de 100% ao ano para pessoas e de 60% para empresas, com uma taxa Selic de 12% - são uma expropriação da renda futura do consumidor e um freio à produção. Como será possível ao Brasil crescer mais? E como nos prepararmos para quando a economia internacional desaquecer? Estamos amortecidos por uma inflação muito baixa, gerada por importações baratas e demanda contida por juros altos. Se ficarmos inertes e vier uma crise externa, o maior risco será: queda das exportações, fuga rápida do capital especulativo, fim dos saldos comerciais, desvalorização do real, encarecimento e diminuição das importações com pressão inflacionária e forte elevação da taxa de juros para conter a demanda. Conseqüência: queda do crescimento, da renda, e assim por diante. A melhor política é favorecer a elevação do dólar com mecanismos que ainda estão à mão: controlar o fluxo de capital especulativo (como estão fazendo Chile e Colômbia) e baixar com muito mais coragem a taxa de juros. Claro que esses instrumentos teriam sido muito mais eficazes se aplicados dois ou três anos atrás, para além de terem garantido maior crescimento. Mas ainda há tempo para ousar.