Título: Há muito porre no debate sobre etanol
Autor: Rocha, Marco Antonio
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/07/2007, Economia, p. B2

Parece que muita gente anda de porre com essa história do etanol, no Brasil e no exterior. E não é por bebê-lo nas suas formas engarrafadas e prazerosas usuais. Mesmo sem isso, seus vapores têm preenchido muitas mentes com visões inebriantes de catadupas de dinheiro, em alguns casos, ou com sonhos de superação da 'era do petróleo', em outros, ou ainda com o pânico de um planeta coberto de cana-de-açúcar, milho ou beterraba - sem mais espaço para a produção de alimentos ou para a 'agricultura familiar', tão estimada por pessoas que não pegam na enxada, como os Bovés e os Stédiles.

No primeiro grupo se alistou logo de saída o presidente Lula - perdão, logo de saída não, porque o pioneiro, no Brasil, da saída para o etanol, no plano industrial e comercial, chama-se Mário Garnero, que deu corda no nosso primeiro programa do álcool quando do início da crise do petróleo, na primeira metade da década de 70 do século passado. Digamos, então, que nesta segunda saída nosso presidente tem sido um incansável garoto-propaganda.

Ainda na semana passada, na Conferência Internacional sobre Biocombustíveis, em Bruxelas, ele partiu mais uma vez para a defesa do etanol brasileiro e para o desmonte dos argumentos dos que apontam os perigos da expansão da cana-de-açúcar, em detrimento dos alimentos, brigada aguerrida que inclui alguns ambientalistas de nomeada e cujo comandante na cena internacional é ninguém menos que 'el comandante', o sr. Fidel Castro. E, pelos relatos da imprensa, Lula foi aplaudidíssimo na apresentação que fez sobre a política brasileira de biocombustíveis. Clóvis Rossi, na Folha, dizia que alguns delegados de países africanos 'mais soltos e entusiasmados' gritavam 'bravo'.

Um dia antes, um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) havia dito que o crescimento da produção de etanol e de biocombustíveis em países em desenvolvimento poderia aumentar de 10% a 20% os preços internacionais dos alimentos, prejudicando principalmente os países pobres da África e da Ásia.

Na sua fala, Lula contrapôs-se a essa preocupação dizendo que 'a experiência brasileira mostra ser incorreta a oposição entre uma agricultura voltada para a produção de alimentos e outra voltada para a produção de energia'. E completou: 'A fome, no meu país, diminuiu no mesmo tempo em que aumentou o uso de biocombustíveis.' Na verdade, a comparação foi mal escolhida pelo presidente, pois uma coisa não tem nada que ver com a outra. A diminuição da fome (se realmente houve) estaria muito mais ligada à melhoria da renda real, em geral, e a políticas públicas - como o Bolsa-Família e, antes dele, o Bolsa-Escola - do que ao uso de biocombustíveis.

Mas ele tem razão, de qualquer forma, em dizer que não há oposição entre os dois tipos de agricultura e aquelas preocupações das duas organizações - que reforçam politicamente os grupos dos 'do contra'- podem ser respondidas de modo mais técnico e convincente, como, por exemplo, numa entrevista do físico e professor José Walter Bautista Vidal, da SBPC, à revista Com Ciência:

'Li sobre os pronunciamentos de Fidel Castro combatendo o programa do álcool. Ele está profundamente equivocado, porque a produção de álcool dá como subproduto uma grande quantidade de alimentos. Esses comentários demonstram falta de informação. Estou até procurando o embaixador (de Cuba) para passar as informações corretas. Por exemplo, as microusinas novas estão acoplando a produção de cana com a criação de gado confinado. O gado é alimentado com bagaço de cana e o vinhoto. Uma usina de 200 litros/dia permite criar 80 cabeças de gado, produzindo carne e leite. Como conseqüência, você tem uma grande quantidade de adubo orgânico, que eleva a produtividade da agricultura. Outro exemplo é a mandioca. A raiz dá álcool e a parte aérea da folha é um rico alimento que tem 27% de proteína. É possível produzir uma quantidade enorme de ração animal e humana a partir das folhas. O dendê é outro exemplo. Ao esmagar o dendê, retira-se o óleo e o que sobra se transforma em ração. O girassol também. Já a mamona dá adubo. Em geral, a produção de biocombustíveis dá como conseqüência um aumento na produção de alimentos. Então é um equívoco total essa história de que o álcool vai substituir outras plantações ou diminuir a produção de alimentos. O que vai acontecer é um barateamento do álcool. Essas usinas com tecnologias novas produzem álcool, mas também produzem cachaça, açúcar mascavo e alimentam gado, produzindo carne, leite e adubo orgânico. São o caminho para implantarmos 1 milhão de microusinas no Brasil e aumentar enormemente a produção de carne, leite e adubo.'

O problema, portanto, no caso do Brasil, não é a competição etanol-alimentos. Sob esse aspecto, o eucalipto até mereça, talvez, mais atenção, uma vez que terras para plantação de eucalipto estão sendo arrendadas por preços até melhores do que para cana-de-açúcar e o potencial de escassez futura dessa madeira está mais presente e menos percebido. O problema nosso, como sempre, é de atabalhoamento, desorganização, falta de planejamento, com uma pletora de órgãos do governo palpitando no assunto e, como diz o professor Vidal, de falta 'de leme'.

O fato a reter em mente é que o etanol não é o maná dos céus nem o forçado de Satanás. Está muito longe, ainda, de suceder o petróleo, aqui ou lá fora. Terá outros biocombustíveis como concorrentes. Mas tem valioso papel no desenvolvimento brasileiro desde que racionalmente gerido. As lições dos ciclos da cana no Brasil Colônia, do café, da borracha, do açúcar de novo e da laranja podem nos ajudar a formular uma política para o etanol muito mais madura e proveitosa.

*Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marcoantonio.rocha @grupoestado.com.br