Título: EUA deveriam fixar metas próprias
Autor: Ash, Timothy Garton
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2007, Internacional, p. A21

Às vésperas do sexto aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos e da divulgação do relatório do general David Petraeus sobre o ¿reforço¿ de tropas no Iraque, a pergunta feita em Washington - até mesmo por fiéis republicanos que apóiam os objetivos do presidente - é: por que o governo de George W. Bush foi tão incompetente? Por trás disso há uma questão mais ampla: por que o sistema político americano como um todo não consegue oferecer políticas coerentes e boa governança? Em três meses de permanência nos EUA, ouvi essa pergunta mais abrangente ser feita inúmeras vezes por pessoas com íntimo conhecimento dos costumes de Washington.

O Congresso, a Casa Branca e os chefes militares americanos censuram o governo iraquiano por não alcançar as ¿metas¿ políticas e de segurança de Washington. Mas o sofrido povo do Iraque tem o direito de retrucar perguntando como o governo americano tem cumprido suas promessas.

Considere-se, por exemplo, a antiga política de ¿desbaathização¿. Hoje, está em voga o contrário, a não-desbaathização - ou seja, o objetivo agora é reverter, tardiamente, a decisão do então administrador americano Paul Bremer de expurgar praticamente todos os membros do Partido Baath, de Saddam Hussein, das nascentes estruturas do novo Iraque, o que removeu tanto os funcionários competentes como os criminosos e corruptos.

Ao lado da decisão de dissolver o Exército iraquiano, esse expurgo é hoje considerado, até mesmo por muitos que então se encontravam nos altos escalões dos governos e forças dos EUA e da Grã-Bretanha, um dos erros mais fatais cometidos na ocupação do Iraque.

Podemos discutir se esses e outros erros foram realmente decisivos para o desfecho ou se o Iraque - tendo em vista sua história e o legado da tirania de Saddam Hussein, exacerbado por anos de sanções ocidentais - estava condenado a ruir numa confusão sangrenta. Mas agora só existem três pessoas no mundo (George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld) que negariam que a política dos EUA para o Iraque era profundamente falha e incoerente. A questão é: por quê?

Nesta semana, vamos analisar novamente o que os EUA podem nos dizer sobre o Iraque e seu governo; também deveríamos analisar o que o Iraque nos diz sobre os EUA e seu governo.

Vejamos, por exemplo, essa decisão da desbaathização e da dissolução do Exército iraquiano. Em primeiro lugar, será que não havia ninguém versado em história iraquiana e política árabe, para não mencionar a história de outras ocupações, que pudesse soar o alarme? Se sim, por que essas pessoas não foram ouvidas?

Em segundo lugar, como a decisão foi tomada? Isso foi tema de controvérsias nos últimos dias, pois os envolvidos costumam jogar outro jogo favorito de Washington: passar a batata quente para outra pessoa. (Estou esperando o livro no estilo de Bob Woodward no qual George W. Bush dirá: ¿Não fui eu, foi Cheney!¿ - ou vice-versa.)

Aparentemente, o que aconteceu foi que uma decisão inicial, aprovada pelo presidente, de manter o Exército iraquiano praticamente intacto foi revertida por Bremer, trabalhando com o Pentágono, sem nenhuma consulta séria à conselheira de Segurança Nacional ou ao secretário de Estado. O presidente foi previamente informado, mas apenas numa frase de passagem numa carta que não apresentou claramente a dimensão do expurgo pretendido, menos ainda suas possíveis conseqüências.

Bela maneira de conduzir um governo. Com um presidente que lava as mãos, uma conselheira de Segurança Nacional fraca, um barão todo-poderoso no Pentágono e um vice-presidente conspiratório exercendo poder sem precedentes, não houve uma política coerente para o Iraque, e sim várias políticas concorrentes, que mudavam ao longo do tempo.

Quando discuti o assunto com um militar de alta patente da reserva, ele comparou a situação, de modo bastante original, com a confusa estratégia do Império Austro-Húngaro no início da 1ª Guerra Mundial.

Incapaz de definir prioridades entre vários objetivos estratégicos (esmagar a Sérvia, repelir a Rússia), o império acabou não alcançando nenhum. Foi esse o país cronicamente confuso que o escritor Robert Musil chamou de Kakania.

Em Washington, essa nova Kakania, chamam isso de processo interagências. Mesmo com um presidente mais forte, mais sintonizado com as realidades estrangeiras e no comando dos detalhes, persiste um problema crônico de coordenação estratégica e implementação.

Outro exemplo, de um tipo bem diferente, é o abismo entre o objetivo declarado de promover a democracia ao redor do mundo, supostamente a prioridade do governo Bush no segundo mandato, e o que realmente aconteceu. Aqui, o principal problema não foi a presença de agências fortes e concorrentes, e sim a ausência de uma agência seriamente empenhada e equipada para buscar esse objetivo (o semi-autônomo Fundo Nacional para a Democracia é uma exceção honrosa, mas pequena).

O que os EUA realmente fizeram para promover a democracia, por meios pacíficos, no Egito, Irã ou Arábia Saudita nos últimos três anos? Muito pouco.

A Kakania das ações governamentais é agravada pela Kakania política. O minucioso envolvimento do Congresso nas entranhas do governo, a influência desproporcional de lobistas e doadores e um cronograma eleitoral absurdamente frenético contribuem ainda mais para o que Musil chamou de ¿condições kakanianas¿.

Um novo presidente (ou na próxima vez, quem sabe, uma nova presidente) passa seu primeiro ano obtendo a confirmação do Congresso para seus nomeados políticos e formando suas equipes. Então o governo tem um ano para fazer alguma coisa. Daí vêm as eleições parlamentares do meio do mandato presidencial. Depois começa a próxima corrida presidencial, de modo que um presidente em primeiro mandato já concorre ao segundo, enquanto um presidente em segundo mandato já está de saída.

Já os congressistas, que enfrentam as urnas a cada dois anos (um mandato ridiculamente curto), mal são eleitos e já têm de começar a levantar fundos para a próxima campanha. Isso também significa fazer favores, reservar verbas para clientes em seus distritos e recorrer a outras práticas kakanianas que os EUA jamais sonhariam promover em seus programas de desenvolvimento e democracia ao redor do mundo (o lema é ¿faça o que digo, não o que faço¿). Bela maneira de conduzir um país.

Os americanos comuns estão ficando fartos disso, embora o Iraque pese menos que temas domésticos como a saúde. Barack Obama garante aplausos sempre que ataca os velhos métodos do ¿grupo íntimo de Washington¿ - o que serve também como referência não tão velada a sua principal rival, Hillary Clinton, ainda a clara favorita democrata. Mas, na verdade, há um argumento segundo o qual só um membro do grupo íntimo de Washington, conhecedor do funcionamento desse sistema complexo, obscuro e traiçoeiro, pode mudá-lo. E ninguém poderia ser mais íntimo, mais conhecedor dos problemas e instrumentos da política governamental americana, do que Hillary Clinton - especialmente se lembrarmos que ela é apoiada e encorajada pelo ex-presidente Bill Clinton, exercitando-se para um possível papel de ¿primeiro-damo¿.

Segundo o website da campanha de Hillary, a razão número sete (de uma lista de dez) para votar nela é ¿restaurar a competência e pôr fim à camaradagem no governo¿ (a razão número um, aliás, é ¿pôr fim à guerra no Iraque¿). Para começar a fazer isso, ela poderia seguir o exemplo de Gordon Brown. O primeiro-ministro britânico iniciou seu mandato apresentando um claro e impressionante programa para a ¿governança da Grã-Bretanha¿. O mesmo é extremamente necessário para a governança dos Estados Unidos. Assim, o governo americano poderia fazer para si mesmo, como fez para o governo do Iraque, uma lista de metas.

Mas quem deveria monitorar sua implementação?

*Timothy Garton Ash é historiador britânico