Título: Monges budistas têm tradição de luta e mobilização na Ásia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2007, Internacional, p. A24

Clero é a única instituição de Mianmá que não foi cooptada pelos militares

As cenas que mostram jovens monges comandando os protestos antigovernamentais em Mianmá contrariam o estereótipo ocidental de budistas ascetas amantes da paz. Elas, contudo, seguem uma longa tradição de ativismo político na Ásia. Desde os chamados ¿guerreiros dobdob¿ do Tibete (organização especial de monges conhecidos por sua força física e coragem, que praticam intensamente exercícios e esportes) até os mestres de kung fu do templo Shaolin, na China, diversos mosteiros foram, historicamente, centros de treinamento de artes marciais e muitos exerceram uma influência política considerável.

Em Mianmá, os monges organizaram-se para formar as Associações Budistas de Jovens no início do século 20. Muitos tiveram grande participação nos protestos anticolonialistas que ajudaram o país a conquistar a independência em 1948. Quarenta anos depois, muitos deles foram assassinados pelo Exército de Mianmá, juntamente com milhares de outras pessoas, na repressão dos protestos de 1988 em Rangum. Cerca de 90 monges ainda estão presos por causa de seu envolvimento naqueles protestos.

Embora alguns observadores comparem o ativismo dos monges ao dos estudantes universitários, os contrastes são notáveis: enquanto os estudantes em geral pertencem a uma classe média, os monges normalmente vêm de famílias pobres, que não se permitem alimentar e educar os filhos. De acordo com a mídia local, existem em torno de 100 mil alunos nas 1.200 escolas de mosteiros do país, que oferecem cama, refeições e aulas para crianças de 8 a 16 anos.

O ensinamento budista enfatiza o pacifismo e o respeito por todas as criaturas vivas. Mas, com centenas de milhares de adeptos na Ásia, ele também tem relação com a política. No Tibete, o dalai-lama é, tradicionalmente, rei, deus e líder religioso, e as autoridades chinesas prenderam muitos monges por exibirem fotos de seu chefe supremo exilado.

Outros países asiáticos abrigam organizações políticas poderosas associadas a grupos budistas. No Sri Lanka, em 2004, nove monges que se opuseram a uma conciliação com os rebeldes do movimento Tigres Tâmeis conquistaram cadeiras no Parlamento. Na Tailândia, este ano, monges realizaram uma passeata até o Parlamento para exigir que a nova Constituição do país reconheça o budismo como religião nacional.

Comparada com as históricas batalhas entre templos, a violência hoje é bem menos comum - mas existe. Em 1998, Seul foi palco de uma luta sangrenta entre centenas de adeptos de dois líderes rivais da mesma seita.

No entanto, muitas manchetes sobre os monges na Ásia destacam seu pacifismo. Este ano, um jornal da Malásia fez uma reportagem sobre os problemas enfrentados por um templo que lutava para mudar um ninho de saúvas sem matar nenhuma delas.

O clero budista é reverenciado em Mianmá e é a única instituição que não foi cooptada pelos militares. O país conta com cerca de 500 mil monges - homens e mulheres. Em termos de escala, somente essa organização pode ser comparada às Forças Armadas.

O número de monges é muito grande porque a sociedade birmanesa pretende que cada pessoa renuncie aos bens materiais pelo menos durante sete dias de sua vida. Com freqüência, os birmaneses usam túnicas durante alguns anos, vivem sem dinheiro e num templo, retornando depois às atividades mundanas. Um monge deve sobreviver de esmolas.

BOICOTE

O mais recente protesto pacífico foi o boicote, pelo clero budista, de doações feitas pelo regime militar - uma afronta grave ao governo birmanês. Esse boicote foi ampliado mais tarde, quando os monges se recusaram a realizar casamentos ou funerais de soldados e seus parentes.

Mais de 85% dos habitantes de Mianmá são budistas, e os pobres são os adeptos mais fiéis, porque os monges dirigem as únicas escolas das áreas rurais. Os mosteiros também fornecem muitas vezes dinheiro para compra de remédios e comida para os indigentes.

Os monges têm uma longa história de participação nos embates políticos do país, desde a luta contra o governo colonialista britânico até a insurreição pró-democracia de 1988, esmagada pelo Exército.

O empobrecimento de Mianmá é o que parece ter despertado a consciência das ordens religiosas - que exigiram uma redução imediata dos preços dos combustíveis, a libertação de prisioneiros políticos (incluindo a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi) e a rápida adoção de medidas com vistas à democratização do país.

A formação da Aliança de Todos os Monges de Mianmá, cuja liderança é desconhecida, para comandar as manifestações pacíficas de protesto é um sinal de que o clero budista está novamente disposto a enfrentar os líderes do país em nome da liberdade.