Título: Mauricio e seu mundo de nanquim
Autor: Brancatelli, Rodrigo
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2008, Cidades, p. C8

Com suas sobrancelhas arqueadas e os olhos naturalmente apertados, Mauricio de Sousa parece estar sempre sorrindo. Ele chega 30 minutos depois do combinado para a entrevista em seu escritório - um tanto apressado e um bocado atrasado para o próximo compromisso da agenda. É assim todo santo dia. Aos 72 anos, com 10 filhos, 12 netos e um bisneto, o desenhista trabalha mais de 12 horas diárias de segunda a sexta, às vezes aos sábados e domingos também. Nas madrugadas, ainda aproveita para mandar e-mails pelo seu celular modernoso. Cansativo? Que nada... Quanto mais trabalha, mais Mauricio parece que sorri com suas sobrancelhas em forma de acento circunflexo.

¿É assim mesmo, não sei fazer de outra forma¿, diz Mauricio, que nos dias anteriores já havia revisado roteiros de novas histórias em quadrinhos, conversado com um mundaréu de empresários, batido o martelo para animações para a televisão, ajudado na formatação do próximo filme da Turma da Mônica para o cinema e ainda inventado mais dois personagens, a garotinha Keika e o amigo Tikara, mascotes das comemorações do centenário da imigração japonesa. ¿Meu mundo é isto aqui, o papel , a caneta... Eu brinco que, se há algo nesse mundo que eu não tenha feito, eu simplesmente não me arrependo porque sei que ainda dá tempo de fazer.¿

Para um repórter que cresceu rindo com os planos fracassados do Cebolinha e entrou pela primeira vez em uma cinema para ver a Turma da Mônica enfrentar o Lord Coelhão em A Princesa e o Robô, Mauricio é quase como um Monteiro Lobato dos quadrinhos. Suas criações de nanquim estão em quase 30 países, vendem 2,5 milhões de gibis por mês e têm cerca de 3 mil produtos licenciados, de adoçante e mochilas a parques de diversões.

Mas Mauricio parece nunca assumir uma posição de ícone, pelo contrário. Com os olhos brilhando, ele fala com uma paixão contagiante sobre os personagens, como se vivesse dentro de uma revistinha. E como se sua São Paulo fosse na verdade o bairro do Limoeiro - o local fictício onde moram suas criações.

¿Mônica, Cascão, Cebolinha, Magali, eles todos são a minha família, são inspirados na minha vida, então eles são parte do que eu sou¿, diz. ¿Eu visto o meu mundo com as cores do bairro do Limoeiro. Por isso não me importo tanto em trabalhar. E é por isso que não desanimo. Todo mundo fica falando em depressão, em tristeza, em problemas, essas coisas. Eu acho que tenho apenas 2 ou 3 minutos de depressão por ano. Aí eu curto esses momentos o máximo que posso, só para descobrir sobre o que as pessoas tanto falam.¿

A linha entre a realidade e a ficção de fato é bem tênue no mundo de Mauricio. O personagem Titi, por exemplo, é na verdade uma caricatura de um sobrinho do desenhista. Bidu era o cachorrinho da família. Horácio é seu alter ego, sempre com mensagens filosóficas. Franjinha é o Carlinhos, outro sobrinho, que mora no Guarujá. Cebolinha e Cascão eram dois amigos do seu irmão. ¿O Cascão não tomava banho mesmo, e o Cebolinha falava errado e tinha o cabelo todo espetado¿, conta. E, claro, a Mônica - garotinha baixinha, ¿golducha¿ e dentuça que apareceu pela primeira vez em 1963 em uma tirinha do Cebolinha (reproduzida acima) - é uma espécie de versão da sua filha que nunca saiu da infância.

¿Quando era pequena eu até tinha dentes grandes, carregava um coelhinho amarelo, era um pouquinho brava¿, assume a Mônica de verdade. Ela tem 47 anos, dois filhos e trabalha na empresa do pai cuidando da área de licenciamentos. Talvez traumatizada com a fama da xará ¿baixinha¿, Mônica não revela a altura nem sob tortura - deve ter pouco mais de 1,60 metro. ¿Ela era bem brava mesmo, brigava com todo mundo¿, retruca Mauricio, rindo. ¿E o cabelo dela parecia caminho de rato, porque a irmã pegava a tesoura e cortava tudo torto.¿

Mônica foi a primeira, mas não a única da casa a virar desenho - Magali, Maria Cebolinha, Marina, Do Contra e Nimbus também são filhos-personagens. ¿Eu achava engraçado aparecer na revistinha. Meu pai sempre falou em casa que os personagens eram apenas inspirados na gente, que não era de verdade, até para não ficarmos metidos e arrogantes no colégio¿, conta Mônica. ¿Ele diz até hoje que escolhia o nome dos filhos já pensando em algo forte, pra virar personagem. Na adolescência eu já não gostava tanto assim da idéia, foi difícil me desvencilhar da Mônica dos quadrinhos. Mas hoje os personagens são parte da família, são como irmãos.¿

DICK TRACY DO JORNALISMO

Filho do poeta, escritor, pintor, radialista, compositor e barbeiro Antônio Mauricio de Sousa e da poetisa Petronilha Araújo de Sousa, Mauricio começou desenhando cartazes em Mogi das Cruzes, onde viveu até os 19 anos. ¿Mogi formatou minhas histórias. Eu pescava no rio, entrava e saía da casa dos vizinhos, brincava na rua...¿, lembra. ¿Meu pai, em vez de proibir o gibi, chegava de noite do trabalho e jogava vários gibis na minha cama. Minha mãe também era incrível. Até o fim da sua vida, ela me dava uma mesada em dinheiro. E ai se eu não aceitasse... Era uma coisa bonita que sempre tivemos.¿

Na cidade grande, Mauricio foi bater na porta do jornal Folha da Manhã para saber se havia vagas para cartunistas. Virou repórter policial. Trabalhou por cinco anos cobrindo crimes, assassinatos e brigas, sempre vestido de chapéu e sobretudo, igualzinho ao Dick Tracy. Mauricio ilustrava as reportagens com desenhos, que faziam um sucesso danado entre os leitores. ¿Uma hora tive que decidir entre o jornalismo e o desenho, minha paixão de verdade¿, diz. ¿E foi nessa época que eu criei o Bidu e o Franjinha. Em 1959 saiu a primeira tirinha no jornal e daí para a frente eu abandonei a máquina de escrever e virei desenhista.¿

Esse ¿daí para a frente¿ da história de Mauricio ficou impresso nos quadrinhos. Publicou tiras em dezenas de jornais, editou revistas, aumentou sua família de personagens, lançou filmes, criou o licenciamento mais poderoso do País, inaugurou parques de diversões... E não falta vontade para preencher mais páginas de histórias. Logo, Cebolinha ganhará um parque só seu em um shopping da cidade, uma revista para adolescentes será lançada e a Turma da Mônica ainda vai participar de um ambicioso processo de alfabetização de 180 milhões de... chineses. ¿Não paro de ter idéias, esse é o problema¿, brinca. ¿Para mim, isso aqui não é trabalho. É a minha vida.¿

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