Título: Países livres têm de receber dalai-lama
Autor: Ash, Timothy Garton
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2008, Internacional, p. A21

Na semana passada, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, prometeu se encontrar com o dalai-lama quando ele vier à Grã-Bretanha, em maio. O mesmo deviam fazer todos os outros líderes de países livres, sempre que surgir uma oportunidade. Qualquer coisa menos que isso nos envergonharia. E não ajudaria a China.

Enfrentamos ao menos três dificuldades para reagir à tragédia que está se desenrolando entre os tibetanos. Não temos informações suficientes sobre o que está realmente acontecendo porque as autoridades chinesas estão determinadas a nos impedir de descobrir, expulsando jornalistas, intensificando sua costumeira censura na internet e contando mentiras.

Nós nos sentimos impotentes para impedir que o horror se desenvolva. E temos de pesar nossa profunda simpatia pelos tibetanos em relação ao nosso interesse por uma evolução saudável da China. Apaziguar o governo chinês em troca de ganhos políticos e comerciais de curto prazo é desprezível, mas tentar assegurar a Pequim que qualquer coisa para ajudar os tibetanos não atrapalhará a evolução da China não é. É a arte do estadismo, e é moral, também.

Eis uma boa razão para não reagir à repressão dos monges budistas do Tibete como fizemos na repressão dos monges budistas em Mianmar. Não, não devemos impor sanções econômicas à China como um todo, como fazemos com Mianmar. Nem devemos boicotar a Olimpíada de Pequim, porque há muita coisa em jogo.

O chanceler da França, Bernard Kouchner, sugeriu que, se a repressão chinesa piorar - e não apenas no Tibete, mas também a perseguição a dissidentes chineses como Hu Jia -, os líderes europeus podem não participar da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos. Uma ameaça talvez valha a pena ser feita, embora eu duvide que seus colegas da União Européia apóiem isso no encontro que terão sexta e sábado na Eslovênia.

Talvez valha a pena exigir que observadores da ONU sejam enviados ao Tibete, embora a China vá vetar essa medida. Igualmente importante é insistir com as autoridades chinesas para que cumpram as promessas que fizeram de permitir livre acesso de jornalistas estrangeiros a toda a China no período anterior aos Jogos Olímpicos.

Mas sabemos que isso não os impedirá de exercer uma repressão violenta. Do jeito como estão as coisas, os tibetanos estão sendo detidos simplesmente por ter uma imagem do dalai-lama. É aí que está o problema, porque o líder espiritual e político exilado de 72 anos dos tibetanos continua sendo de crucial importância para a solução pacífica. Ele ainda conta com o amor e a lealdade da maioria de seu povo. Ao mesmo tempo, oferece aos líderes da China um caminho negociado para a autonomia do Tibete no estilo de Hong Kong, quase a independência total. Se a China fizesse uma análise racional de seu próprio interesse a longo prazo, trilharia esse caminho. Mas não faz.

Com a dubiedade característica dos regimes repressores, os líderes comunistas da China dizem que ele é uma irrelevância, uma relíquia feudal e, mesmo assim, falam sobre ele obsessivamente. Eles o acusam de ser separatista e de instigar os protestos. Isso não é verdade.

O dalai-lama continua repetindo que não quer a independência total. Não há um ser humano no mundo hoje que seja mais comprometido pública, consistente e inequivocamente com o caminho da não-violência. Ao aceitar o Nobel da Paz, em 1989, ele mencionou Gandhi, o homem que fundou a tradição moderna da ação não-violenta para a mudança. Na semana passada, ameaçou renunciar ao posto de chefe do governo tibetano no exílio se seus seguidores recorrerem à violência. Não existe o menor indício de que ele tenha instigado o levante no Tibete. Ao contrário, o fato de a fúria popular ter transbordado na forma de protestos de rua sugere que ao menos alguns tibetanos estão fartos do caminho da não-violência.

Portanto, os líderes da China enganaram-se totalmente sobre as intenções do dalai-lama. Provavelmente, eles também subestimam o poder dele. Como Stalin perguntou 'quantas divisões tem o papa', eles podem perguntar: 'Quantas divisões tem o dalai-lama?' Se for assim, estão sendo tão míopes como Stalin. Como o papa João Paulo II, o 14º dalai-lama possui uma das mais puras formas do 'poder brando'. Nós, da nossa parte, tendemos a subestimar a importância política de atos simbólicos tais como um encontro com um líder exilado ou dissidente. Os auto-intitulados realistas desmerecem isso como um gesto superficial, dessa forma demonstrando sua própria falta de realismo. Quem já viveu sob um regime repressor sabe como são importantes para as pessoas oprimidas esses atos de reconhecimento simbólico.

As autoridades chinesas também sabem que esses encontros importam pois, do contrário, não estariam gastando tanto esforço para tentar impedi-los. Eles é que são os verdadeiros 'separatistas', tentando dividir e comandar entre países livres que competem por seus favores econômicos.

Assim, com uma coisa os chanceleres da UE deveriam concordar em sua reunião desta semana: com que todos os chefes de governo europeus recebam o dalai-lama, sempre que ele queira. E o mesmo deve valer para todos os outros países livres, da Austrália ao Brasil. Ao estabelecer este princípio, enviaremos três mensagens importantes a Pequim: as democracias não são tão facilmente divididas; o dalai-lama representa verdadeiramente o caminho da não-violência e da negociação; e nós queremos nos engajar plenamente na modernização da China e celebrar uma maravilhosa Olimpíada em agosto, mas não passando por cima dos cadáveres de monges budistas.

*Timothy Garton Ash é historiador britânico e colunista do jornal 'The Guardian'

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