Título: As lições de Doha
Autor: Camargo Neto, Pedro de
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2008, Espaço Aberto, p. A2

Comecei a desacreditar que a Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC) iria promover avanços substanciais, como expresso na declaração assinada no Qatar, na última reunião ministerial realizada em Hong Kong em 2005. Negociações multilaterais com mais de 150 países, em que se exige o consenso, ocorrem por espasmos. Reuniões ministeriais ou miniministeriais, como a da semana passada, são muito importantes e a reunião de Hong Kong foi um fiasco.

A reunião de Hong Kong produziu uma declaração de consenso, mas sem qualquer avanço. Antes, a reunião de Cancún, embora tenha fracassado, caracterizou que os países em desenvolvimento não iriam mais aceitar a manutenção dos subsídios à exportação agrícola. Quatro meses depois, a União Européia (UE) decidiu que eliminaria essas políticas, retirando da pauta de Doha importante obstáculo.

Cancún foi o berço do chamado G-20, grupo de países que, catalisados pelo Brasil, se uniram para enfrentar uma proposta conjunta dos EUA com a UE, em que os subsídios à exportação eram mantidos. Sem esta importante alteração de forças, provavelmente teria sido aprovada. O G-20 tinha em Cancún um claro denominador comum no comércio agrícola, o fim dos subsídios à exportação.

A União Européia compreendeu que teria de mudar. A reunião de Cancún pode ser vista como de enorme sucesso, apesar de não ter produzido declaração consensual.

A minha compreensão indicava que o passo seguinte deveria ser atacar os subsídios norte-americanos, que, embora classificados como de apoio doméstico, têm importante efeito nas exportações daquele país, nosso maior concorrente nos mercados asiáticos. O G-20 havia vencido os subsídios à exportação na sua forma clássica, mais utilizados pela UE, e agora seria a vez do componente exportador dos subsídios norte-americanos. Havíamos recentemente vencido em primeira instância o contencioso do algodão, que, de maneira didática e com amplo apoio político, demonstrava esse lado pernicioso das políticas de Washington. Atacar esse lado dos subsídios teria, com certeza, consenso dentro do G-20.

Apresentei propostas ao governo. Reclamei com antecedência da ausência de prioridade que parecia existir para a questão dos subsídios. Fiquei perplexo quando cheguei a Hong Kong e assisti, como ouvinte, a inúmeras reuniões, em que o Brasil ignorava a questão dos subsídios. Não se tratava de menor prioridade. O tema, simplesmente, não constava da agenda.

O Brasil entrou na reunião de Hong Kong com forte proposta de ampliação de acesso a mercados dos países desenvolvidos. Confrontou abertamente a UE, deixando os EUA na cômoda posição de ouvinte. Debateu durante três dias, até a exaustão. Não conseguiu nada. Terminou ovacionado com o G-20 e o G-33, grupo de países de menor desenvolvimento que não tem prioridade para a questão de acesso. Não entendi nada.

A partir de Hong Kong, as reuniões se multiplicaram. G-20, G-5, G-4, G-20 com G-33, reuniões em que o Brasil brilhou. Os debates técnicos ocorreram em paralelo e o presidente da Comitê de Agricultura foi produzindo rascunhos de possíveis declarações de avanços. As questões críticas ficavam para um confronto ministerial.

Antecedendo Genebra, o Itamaraty procurou o setor privado. Todos manifestaram que desejavam o término da rodada, aceitando uma redução de ambição. Novamente tive a oportunidade de manifestar que era essencial maior redução dos subsídios dos EUA. Os números que circulavam eram anteriores à alta de preços agrícolas. A reunião de Genebra precisava pressionar os EUA, principalmente pelo efeito político. O Brasil somente manteria liderança para pressionar seus parceiros do G-20 com uma proposta que pressionasse também os EUA. Falei sozinho, não obtendo apoio sequer do setor agrícola.

A miniministerial de Genebra iniciou-se e, logo depois, o diretor da OMC, Pascal Lamy, apresentou um texto. Incluía seu entendimento do que seria um mínimo aceitável por todos. Na procura do consenso entre 152 países é mais importante saber os pontos inaceitáveis, pois se sabe com antecedência que o desejado individualmente não será atingido.

A proposta de Lamy teve como primeiro apoiador o Brasil e como primeiro opositor, a Índia. O G-20 fraturou-se na frente de todos. Reflito se não teria existido debate interno ao G-20 sobre o mínimo aceitável, sobre os sacrifícios exigidos para evitar o fracasso. Estaria um dos seus líderes, se não o maior, o Brasil, preparado para assumir uma posição de apoio ao texto sem consultar os seus membros? Para que tanta pressa?

O texto de Lamy tinha, na minha opinião, uma falha. Ao colocar como nível máximo de subsídios aos EUA US$ 14,5 bilhões, deixou o país muito confortável. A negociadora norte-americana, no primeiro dia, oferecera US$ 15 bilhões, quase o mesmo número. A Índia vinha pressionando pela metade disso. Lamy se equivocara ao deixar os EUA menos infelizes do que os outros. O Brasil deveria ter notado que esse ponto dificultaria seu trabalho de convencimento do restante do seu grupo.

O debate que se seguiu se centrou na proposta das chamadas salvaguardas especiais, de interesse da Índia e em que o Brasil tem manifesta divergência. A Índia não se interessou em colocar que poderia trocar um sacrifício na sua ambição de salvaguardas por um avanço nos subsídios norte-americanos. Os EUA tampouco fizeram o inverso, até sabendo que o item seguinte da agenda de Genebra eram os subsídios ao algodão. O equívoco de Lamy não foi trabalhado pelo Brasil até porque, afoitamente, já tinha aprovado e visto sua liderança se esvair.

O fracasso de Genebra não é o fim do mundo.

Pedro de Camargo Neto é presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs)