Título: Kadafi ilustra futilidade de cúpulas
Autor: Jenkins, Simon
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/09/2009, Internacional, p. A18/19

Os assuntos internacionais amolecem os miolos das pessoas. Elas voam em aviões, conversam na linguagem dos bebês e seu comportamento regride até se assemelhar ao dos adolescentes. A Assembleia-Geral das Nações Unidas realizada na semana passada foi uma nova rodada de paixões súbitas, namoros terminados nas escadas dos fundos, abraços arrependidos e hipersensibilidade diante das recepções decepcionantes. O único remédio é a abstinência. Quando um assessor chegar acenando com uma nova passagem aérea, basta dizer não.

Mesmo pelos padrões do Congresso de Viena, as extravagâncias da semana passada em Nova York pareceram maluquice. A delegação britânica foi reduzida a ataques de fúria depois que o presidente americano, Barack Obama, concedeu audiências a Rússia e China, mas só conversou com o premiê britânico, Gordon Brown, numa breve conversa informal na cozinha. Isso lembrou a ocasião em que Robert Mugabe concedeu a seu amigo Samora Machel uma praça em Harare; seu inimigo Kenneth Kaunda teve o nome emprestado a um atalho para a estação.

Os assessores de Brown imploraram cinco vezes por uma sessão reconciliatória e aparentemente reagiram com indignação diante de cada recusa. Depois de Obama ter se recusado a ser fotografado em Washington ao lado de Brown e sua ridícula sacola de lembrancinhas, isso reduziu o primeiro-ministro britânico e seus assessores a um punhado de candidatas a modelo derrotadas em concursos de beleza chorando suas mágoas no camarim. Brown, que deixou Londres como homem adulto, teve de se consolar com um abraço de Bono, que o chamou de "maior estadista do mundo".

Isso vai além da sandice. Será que Obama humilhou Brown e esnobou o povo britânico? A resposta é que só pode ser esnobado aquele que pede para sê-lo. Ao conceder audiências a Rússia, China e Japão, Obama reconheceu as realidades do poder moderno. É a diplomacia que exagera as nuances do contato cara a cara para obter o maior efeito emocional possível.

Podemos considerar que Obama e Brown nada tinham para debater que não pudesse ser administrado por meio da correspondência eletrônica. Se o presidente ficou bravo com a libertação do condenado pelo atentado de Lockerbie por pressão da Grã-Bretanha, por que insistir no assunto?

A questão toda é de uma tolice surpreendente. O problema é que esse tipo de linguagem corporal é o equivalente diplomático de um navio de combate lançado aos mares com um almirante a bordo.

O homem que serve como medida de tudo isso é Muamar Kadafi. Na quarta-feira ele se pavoneou, declamou, fez piadas, mas em nenhum momento "conferenciou" durante seu discurso de 98 minutos. Sua desconexa paródia da blogosfera encapsulou o espírito enfadonho de uma sessão plenária da ONU.

Ele comentou sobre a inexistente "gripe do peixe", o assassinato de JFK e a perversa constituição da ONU. Ele tripudiou sobre a Carta da ONU, destacando a hipocrisia dos países-membros do Conselho de Segurança, que proclamam a igualdade entre os países enquanto os mais ricos travam guerras contra os mais pobres. Kadafi até disse a seus ouvintes que eles estavam sofrendo de jet lag e deveriam ir para a cama.

Kadafi imitou de maneira brilhante o tédio de tais reuniões. O aspecto acrítico concedido a elas pelos estadistas e comentaristas é absurdo - principalmente porque estão todos desfrutando de um gigantesco piquenique à custa do governo. Assim como as reuniões do G-8 e do G-20, elas são um desperdício de tempo e dinheiro - e também transmitem a falsa impressão de que os estadistas estão agindo, em vez de apenas desfilando. Elas sugerem que as medidas adotadas são de alguma maneira influenciadas pela comunhão física dos grandes e nem tão bons. Assim, elas induzem ao cinismo aqueles que tais reuniões alegam estar ajudando.

Não estou ciente de algum motivo que justifique os 20 milhões de libras gastos no semestre passado com os dois dias da reunião de cúpula do G-20 em Londres nem os US$ 19 milhões gastos apenas com o aparato de segurança para a reunião de Pittsburgh, EUA, na semana passada.

Como destaca David Reynolds em seu livro Summits ("Reuniões de Cúpula"), o conceito de um encontro cara a cara capaz de reforçar a confiança perdeu força com a frequência e densidade dos contatos internacionais. As reuniões de cúpula tornaram-se pretextos para o exibicionismo, e as reuniões europeias são o maior exemplo disso.

Assim, o discurso de Obama na ONU foi previsivelmente impressionante, mas não atendeu a nenhum objetivo que não tivesse sido atingido por seu abandono do programa do escudo antimíssil em países próximos da Rússia.

O gesto foi mais poderoso do que quaisquer palavras. Da mesma forma, as incontáveis conferências da ONU e do G-8 para combater a pobreza no plaental tornaram-se uma piada de tamanho mau gosto que não devem ser repetidas. Muito é dito, astros do rock participam da plateia, mas nada é feito.

Durante as muitas reuniões realizadas no início do ano para debater o colapso do crédito global, os líderes parabenizaram uns aos outros pela quantidade de dinheiro de seus contribuintes gasta no resgate dos bancos. Eles proferiram clichês a respeito dos banqueiros, afirmando que estes deveriam emprestar mais e receber menos. Nenhuma dessas medidas foi adotada e nada disso está de fato sendo feito. As tentativas da ONU ao longo dos anos para solucionar o conflito palestino-israelense ou para pôr fim aos desastres na região sudanesa de Darfur e na Somália foram marcadas pelo insucesso. Elas só conseguem desviar as atenções da pressão que deveria ser exercida dentro dos Estados, de maneira bilateral e no âmbito dos grupos regionais - pressões que apresentam maior probabilidade de render resultados produtivos.

Em relação ao cumprimento da lei internacional, as duas armas favoritas da ONU - as forças de manutenção da paz e as sanções econômicas - costumam se mostrar contraproducentes. Quando o presidente russo, Dmitri Medvedev, diz que as sanções contra o Irã são "pouco produtivas, mas às vezes inevitáveis", isso sugere que a ONU está mais preocupada em infligir dor do que em fornecer uma cura.

Nada é mais questionável do que a suposta contribuição feita pela deliberação da ONU em prol da não-proliferação nuclear, reafirmada pelo Conselho de Segurança. Esse assunto pode ainda empurrar o Ocidente a outra guerra aberta contra um país muçulmano. Nova York simplesmente ofereceu ao presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, uma oportunidade para vociferar e confundir. Sua posição oscilante em relação ao enriquecimento de material radioativo não se alterou nem um milímetro, enquanto oferecer a ele um palanque na ONU provavelmente fortaleceu sua mão para agir contra os moderados em seu país, uma oportunidade para denunciar seus inimigos e deleitar seus partidários.

Para a maioria dos países desprovidos de armas nucleares parece hipocrisia ver Obama, Brown e os líderes dos demais países dotados de armas atômicas declarando que as bombas nucleares são vitais (e seguras) para garantir a segurança nacional de tais países, mas desnecessárias (e perigosas) para todos os outros.

Não há cenário realista que confira significância à capacidade de dissuasão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), mas há vários cenários que se aplicam ao Irã, com potenciais ameaças nucleares além de suas fronteiras. Por que uma arma que supostamente "funciona" para cerca de uma dúzia de países - dos quais nem todos são estáveis e democráticos - é considerada uma aspiração intolerável para outros países? Esta é, ao menos, a opinião de muitos desses outros países.

Se a ONU serviu a algum propósito, este foi demonstrar o vazio intelectual da posição nuclear da Grã-Bretanha. Brown sugeriu que seu país reduziria sua capacidade nuclear somente no contexto de um desarmamento e da não-proliferação nuclear. Por quê? Ninguém está fingindo que precisamos de armas nucleares contra algum inimigo conhecido e declarado que poderia agora se desarmar.

Desde o fim da Guerra Fria, nenhuma nacionalidade hostil à Grã-Bretanha - argentinos, sérvios, iraquianos e agora pashtuns - foi dissuadida de atacar forças britânicas pelo fato de estas possuírem mísseis Trident. Se a bomba britânica é vital, isso não depende do fato de EUA ou Rússia (ou França) reduzirem em algumas ogivas seus arsenais nucleares. Se isso é apenas uma moeda de negociação diplomática, trata-se de uma moeda cara e desnecessária. O Japão não precisou de uma bomba para conseguir uma audiência com Obama esta semana. A posição de Brown é insustentável.

Em vez de resolvê-las, a ONU exacerba estas hipocrisias e bravatas. Confere a elas o glamour do palco mundial, das limusines luxuosas, dos guarda-costas e das lagostas, permitindo que os líderes se entreguem à afetação, arrogância e pretensão.

O cético da diplomacia Conor Cruise O"Brien costumava dizer, dando de ombros: "É tudo para que o mundo possa aliviar parte da pressão." Não estou mais tão certo disto. Tais reuniões reforçam, na mentalidade do público, a crença de que o comportamento grandioso tornou-se, entre os estadistas, o substituto para a ação.

POUCO DIPLOMÁTICOS O jornalista do "Guardian" Simon Jenkins relata neste artigo bastidores curiosos de grandes cúpulas internacionais, como a da ONU, que ocorreu em Nova York na semana passada. Comportamentos anormais das delegações, diz Jenkins, não são a exceção nesses encontros, mas a regra. Nesse sentido, Kadafi foi a maior estrela da última reunião.