Título: A afronta é múltipla
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/10/2009, Notas e informações, p. A3

A censura judicial imposta a este jornal há mais de dois meses e meio não é uma aberrante afronta apenas aos dispositivos constitucionais concernentes à liberdade de expressão e ao direito de a sociedade receber, livremente, todas as informações que digam respeito ao interesse público. Esse, afinal, é um dos fundamentos do regime democrático de Direito. A afronta se estende a outros institutos constitucionais, tais como os que têm na isonomia ou igualdade de Direitos uma garantia fundamental da cidadania e aqueles que se reportam a tratados internacionais.

Em artigo publicado no Estado de sexta-feira, o ministro da Justiça, Tarso Genro, faz percuciente menção ao desrespeito constitucional que representa o ato de "censura discriminatória e unilateral contra o Estadão". Logo que surgiu ? para espanto dos meios jurídicos ? a sentença liminar do desembargador Dácio Vieira, amigo íntimo da família Sarney, proibindo este jornal de publicar matérias com base nas gravações da Polícia Federal, que comprometiam o empresário Fernando Sarney, filho e administrador dos negócios do presidente do Senado, José Sarney, o ministro Tarso Genro pronunciou-se contrário à interpretação de que se tratava de censura, considerando aquele ato jurisdicional normal, em defesa do "patrimônio subjetivo de um cidadão", em termos de imagem e privacidade.

Mas a evolução do processo e das circunstâncias que o envolviam levou o ministro a reconsiderar seu julgamento. Agora, admite que a liminar sofreu uma "conversão do "tipo" de ato jurisdicional", passando de exercício regular de jurisdição a censura. E acrescenta: "Poderíamos citar como exemplo a aceitação, pelo juiz, do exercício dilatório do direito de defesa (que se transforma em "má-fé") ou o despacho judicial, ainda que tecnicamente regular, que visa a atrasar uma decisão judicial, para ajudar que o réu alcance a prescrição."

Recorde-se o andamento do processo. O desembargador Dácio Vieira foi declarado suspeito e acabou afastado do caso ? mas sua decisão, assim mesmo, foi considerada judicialmente válida. Em seguida o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (o mesmo que havia se considerado competente para acatar a liminar, proferida monocraticamente por um de seus desembargadores, assim como para declarar o impedimento deste) declarou-se incompetente para julgar a ação e remeteu o caso para a Justiça do Maranhão.

E o ministro assim chega à discriminação: "Desta forma, a permanência do ato e não sua motivação originária é o que configura, neste caso, censura ao referido jornal. Até porque diversos outros órgãos já veicularam diversas informações a respeito do caso, sem que houvesse qualquer obstrução por parte do Poder Judiciário. A situação inclinou-se para um tratamento desigual e, portanto, não abrigado pelo ordenamento constitucional do País".

E conclui o ministro da Justiça: "Considero legítima a posição do jornal O Estado de S. Paulo, que visa tão somente a restabelecer, neste caso, o fundamento constitucional da igualdade perante a lei. Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma questão do interesse de toda a sociedade brasileira."

O ministro não está isolado nessa interpretação. Considerando que o autor do pedido de censura ao jornal, Fernando Sarney, já foi indiciado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro, tráfico de influência, formação de quadrilha e falsidade ideológica, o constitucionalista João Antonio Wiegerinck afiança que "não há que se falar de privacidade do acusado quando o que está em julgamento são bens e serviços do Estado". E esta é a interpretação corrente no mundo inteiro, menos nos países autoritários. "A decisão (de censurar o jornal) tem cara de Irã, de Venezuela, de Honduras, onde há interpretação restritiva dos direitos humanos. Todo magistrado deve fazer com que os direitos protegidos se estendam a maior número de indivíduos, e o povo tem direito, sim, de receber a informação."

Já o constitucionalista Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira assim argumenta: "De um lado você tem uma pessoa que se alega prejudicada, mas do outro lado estão valores muito mais amplos. São valores coletivos. Como a sociedade será ressarcida? In dúbio pro reo? In dúbio pro liberdade de imprensa."