Título: Razões para uma reflexão crítica
Autor: Maciel, Marco
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2009, Espaço aberto, p. A2

No Brasil, geralmente as celebrações das datas inaugurais de grande conteúdo simbólico não são previamente preparadas. Conhecemos alguns precedentes. Sem uma reflexão crítica sobre o que representava, por exemplo, a passagem da primeira centúria republicana para o País e para o seu povo, as celebrações ocorreram de forma improvisada - diria até que de afogadilho.

Quando, como agora, rememoramos, comemoramos e celebramos as conquistas de mais de um século de práticas republicanas em nosso país, é indispensável e conveniente lembrar que a Proclamação da República não se cingiu a mudanças no sistema de governo. A propósito da instituição republicana, o inesquecível poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em crônica no Jornal do Brasil, de 21 de junho de 1983, dizia:

"O Senador Marco Maciel apresentou projeto que cria uma comissão especial mista, destinada a promover as comemorações do centenário da República, a efetuar-se daqui a seis anos. Tão cedo? Perguntará alguém. Respondo pelo Senador: nunca é cedo para se falar em República, palavra raramente escrita ou pronunciada em pronunciamentos políticos - já notaram? O pessoal fala muito em democracia, para desejá-la plena ou para limitá-la, relativizando-a.

Mas a República mesmo, que entre nós já tem 94 anos de idade, parece que saiu da moda no vocabulário. Ninguém mais é republicano neste País. Todos são democratas cem por cento, ou democratas relativos ou, finalmente, homens da esquerda ou da direita, indiferentes à qualificação da forma do governo, desde que eles assumam o poder.

Ora, pois, a República fará cem anos em 1989, e pouca gente saberá disto. Sabe-se, é claro, que ela foi proclamada em 1889, mas depois disso há poucas notícias de sua existência, chegando mesmo alguns a supor que ela nunca foi proclamada no Brasil: foi apenas anunciada nas folhas estampadas em armas brasonadas, por sinal que esteticamente mal concebidas."

Não foi sem razão, portanto, que em carta de 14 de fevereiro de 1839, enviada ao conselheiro Manoel José Maria da Costa Sá, o português João Loureiro, privilegiado observador das coisas brasileiras, escreveu: "Os homens de hoje, apesar de tantos ócios, não veem senão com o dia; mesmo as semanas, já chegam a poucos; os meses a muito poucos; os anos a raríssimos; os séculos a nenhum."

Faço essas observações porque dentro de 13 anos o Brasil celebrará o bicentenário de nossa Independência, a data mais importante de nossa evolução histórica. Acreditamos que então já teremos dado passos decisivos para a superação de muitos dos constrangimentos que hoje nos inquietam, nos afligem e travam o nosso desenvolvimento.

Supomos que resgataríamos um pouco de nosso passado, celebraríamos muito de nosso presente e apontaríamos alguns dos rumos de nosso futuro às gerações que nos vão suceder se dedicássemos um pouco das nossas energias a preparar a comemoração do que espero seja a da nossa maioridade como Nação.

Dois séculos podem não ser nada na História da humanidade, mas já são bastante na vida de toda e qualquer nação. Calcada na esperança de começarmos a selecionar e a sistematizar o acervo de nossa avaliação como povo, como civilização e como expectativa para as gerações vindouras é que se encontra em tramitação no Congresso Nacional proposição de minha autoria para criação da Comissão Nacional para o Programa do Bicentenário da Independência.

Não se trata de um órgão executivo, mas tão somente de uma tentativa de mobilizar esforços, definir diretrizes e incentivar a participação dos três Poderes da União, dos entes federativos e das entidades e instituições privadas. Seu objetivo é definir um programa que possa sintetizar nossas esperanças de dar a essa efeméride a dimensão que não soubemos ou não conseguimos lograr em outras oportunidades.

Eis a oportunidade ímpar que, a partir da decisão do Poder Legislativo, terão os brasileiros de adensar seus estudos relativos à construção de nossa História. A esse propósito vale lembrar que, especialmente desde o início da expansão dos cursos de pós-graduação em História no Brasil, multiplicaram-se as pesquisas e as publicações que, entre outros resultados notáveis, reescrevem a História brasileira. Novas e inovadoras contribuições técnico-metodológicas vieram dar suporte ao trabalho de campo, com a incessante e altamente profissional investigação em arquivos, além da descoberta ou redescoberta de importantes fontes documentais. Tudo isso está permitindo que novos olhares possam ser lançados sobre a História brasileira, confirmando, alterando ou refutando interpretações que se tornaram clássicas.

O que a comissão pretende também - e deve fazer - é estimular o prosseguimento de estudos dessa natureza. Para tanto linhas de pesquisa poderão ser criadas ou expandidas; fontes de financiamento serão identificadas; programas editoriais haverão de garantir a publicação desses trabalhos, pondo-os à disposição do público; as redes pública e privada de educação básica serão convidadas a promover atividades, integrando-se efetivamente ao processo de produção e de socialização do conhecimento relativo ao grande tema; associações comunitárias, profissionais, esportivas, estudantis e acadêmicas, tanto quanto clubes de serviço e instituições congêneres, serão chamados a, de alguma forma, participar das comemorações. Nada disso será possível sem preparação, o que pressupõe tempo e indispensável apoio político-administrativo.

Gilberto Freyre sempre qualificou o tempo como "tríbio", ou seja, marcado por uma interposição de presente, passado e futuro. Não podemos deixar de ter sempre presente que algo do passado habita dentro de nós e igualmente há sempre a presença do futuro a nos conduzir. Daí por que acredito que é hora de aproveitarmos o instante para pensarmos o País, o seu povo e as suas instituições.

Marco Maciel, senador (DEM-PE), é membro da Academia Brasileira de Letras