Título: Câmbio, competitividade e autoengano
Autor: Lacerda, Antonio Corrêa de
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/11/2009, Economia, p. B1

Um dos mitos presentes na questão cambial e de competitividade é o de que, no caso brasileiro, é possível "compensar" a valorização do real em relação às demais moedas com a redução de custos sistêmicos, como tributários, burocráticos, logísticos, etc., ou ainda com os ganhos de produtividade no âmbito das empresas.

Para compensar os diferentes níveis de competitividade, os países adotam, no bojo da sua política comercial, tarifas de importação e outros artifícios que, em tese, deveriam corrigir diferenças.

Estamos diante de um grave problema cambial de ordem internacional, mas que no Brasil ganha contornos ainda mais dramáticos. O dólar norte-americano vem se desvalorizando no cenário pós-crise. Trata-se de uma estratégia - nem sempre assumida explicitamente - do governo dos Estados Unidos e do Federal Reserve (Fed), para aumentar a competitividade das empresas locais, o que deve contribuir para diminuir o déficit comercial do país. Para isso mantêm-se taxas de juros nominais próximas de zero, o que significa um juro real negativo, também para estimular a saída da recessão.

Esse processo faz com que a maioria das moedas se valorize relativamente ao dólar norte-americano, porém com uma importante exceção: a China. Somente nos dez primeiros meses deste ano, enquanto a moeda brasileira foi uma das que se valorizaram ante o dólar norte-americano, com 35%, o que ocorreu com outras moedas de países que competem com o Brasil foi: o won coreano valorizou-se apenas 9%; o peso mexicano, 5%; e o yuan chinês, zero. Ou seja, perdemos competitividade diante desses países, especialmente vis-à-vis aos chineses. Um recente estudo da Goldman Sachs, considerando um período mais longo, denota uma apreciação de 50% do real ante o yuan.

A ideia de que é possível compensar a perda de competitividade cambial com desonerações e outras medidas revela, além de desinformação, muitas vezes um processo de autoengano. Reduzir o "custo Brasil" e melhorar a competitividade sistêmica é algo necessário para manter e ampliar a competitividade da produção brasileira. Isso também não dispensa as ações de aumento de produtividade das empresas nem tampouco as atividades de inovação, o que deve sempre fazer parte de uma ampla política pública que fomente as estratégias empresariais nesse sentido.

Mas não nos iludamos. Isso, embora imprescindível, não vai compensar o gravíssimo problema da perda de competitividade advindo da valorização do real. Trata-se, aqui, de problemas que, embora digam respeito à competitividade, são de naturezas distintas. Concorremos cada vez mais com países que têm melhores condições de competitividade, tanto sistêmica quanto das empresas, e que também adotam agressivas políticas comerciais e industriais. Adicionalmente, no caso mais flagrante da China, utilizam a política cambial e outros artifícios - como as práticas de dumping, nem sempre de fácil caracterização - para ganhar mercados.

Ignorar o grave problema da perda de competitividade derivada da valorização cambial e enfrentar o jogo do mercado internacional em condições desfavoráveis representam para o Brasil abrir mão da industrialização conseguida a duras penas. O quadro atual de valorização nos tornará crescentemente dependentes de produtos primários, em detrimento daqueles de maior valor agregado. Isso não vale apenas para a exportação, mas para a produção interna, que compete com os importados, e também para a atração de novos investimentos, uma vez que os países comparam custos de produção em dólares para cálculos de viabilidade e localização de seus novos projetos.

Também não adianta tentar transferir o problema para os outros países. O Brasil deve, sim, aproveitar o seu protagonismo internacional e continuar a interagir nos vários fóruns contra esse desequilíbrio cambial internacional. Mas deve, urgentemente, adaptar a política cambial doméstica ao novo cenário, algo que também torna imprescindível o aprimoramento da política monetária, que ainda mantém juros excessivamente elevados para padrões internacionais, e da política fiscal, que propicie principalmente um horizonte de sustentabilidade intertemporal das contas públicas.

Antonio Corrêa de Lacerda, professor-doutor da PUC-SP, doutor em Economia pela Unicamp, é economista-chefe da Siemens e coautor, entre outros livros, de Economia Brasileira (Saraiva). E-mail: aclacerda@pucsp.br