Título: Novo conceito de filantropia
Autor: Raia , Silvano
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/05/2010, Espaço Aberto, p. A2

Já é perceptível o aprimoramento decorrente da nova sistemática empregada pelo Ministério da Saúde (MS) para certificação de hospitais de excelência como "entidades beneficentes de assistência social", com direito a isenções fiscais.

Entidades filantrópicas são as de atuação inteiramente gratuita exercida a favor de outros, que não seus próprios instituidores. Entretanto, visando a aprimorar o atendimento universal, a que se propõe desde a estruturação do Sistema Únicos de Saúde (SUS) pela Constituinte de 1988, o MS tem adotado outros conceitos para estimular a inserção de hospitais privados na rede pública, bem como para oferecer a pacientes SUS a realização de procedimentos de ponta em hospitais de excelência. Os conceitos, adotados sucessivamente, diferem entre si pelo tipo de contrapartida exigido para a isenção fiscal, garantida pela instrução monetária da Receita Federal de 1/1997.

O Decreto Presidencial 2.536, de 6/4/1998, dispõe sobre a concessão de certificados de filantropia criando duas possibilidades:

Destinar pelo menos 60% das internações, medidas por paciente/dia, a pacientes SUS, cujo atendimento é remunerado de acordo com os valores constantes na Tabela de Procedimentos. Essa alternativa é adotada pela maioria dos hospitais denominados beneficentes sem fins lucrativos que prestam serviços ao SUS.

Vantagens: estimula hospitais privados sem fins lucrativos a destinar leitos para atendimento SUS, que, graças à isenção fiscal, representam cerca de 33% dos leitos do serviço público atual (CNES/Datasus/MS).

Inconvenientes: geralmente os hospitais que aderem a essa sistemática não possuem infraestrutura para realizar exames de imagem de alta complexidade nem procedimentos de ponta, fazendo os pacientes SUS atendidos a eles não terem acesso, a menos que sejam transferidos para hospitais de referência.

Aplicar anualmente em atendimentos gratuitos pelo menos 20% da receita bruta proveniente da venda de serviços, cujo montante, porém, nunca poderá ser inferior ao benefício da isenção das contribuições sociais. Esta alternativa é usada por muitos hospitais de excelência, que por ela se beneficiam duplamente: ocupam o tempo ocioso de seus equipamentos e diminuem o valor dos impostos a serem pagos

Vantagens: aumenta o acesso de pacientes SUS a exames e procedimentos de alta complexidade, facilitando, com o decorrer do tempo, a incorporação ao SUS da tecnologia de ponta correspondente.

Inconvenientes: a oferta de serviços não obedece às políticas e estratégias do SUS nem se submete ao controle do gestor local, o que dificulta, e às vezes impede, a avaliação da contrapartida ofertada.

O Decreto 5.895/2006, adotado pelo MS desde 2008, criou uma terceira possibilidade, dando origem às "entidades beneficentes de assistência social", cuja certificação depende de "realização e financiamento de projetos de apoio ao desenvolvimento institucional do SUS" em áreas específicas de atuação.

Vantagens: os projetos são selecionados pelo MS para atender a necessidades específicas do seu plano geral de atuação; permite o exato conhecimento do valor, do volume e dos resultados dos serviços ofertados; incorpora ao sistema SUS a tecnologia empregada nos projetos.

Em 2008, seis hospitais (cinco em São Paulo e um no Rio Grande do Sul) apresentaram 120 projetos, que, no conjunto, aplicarão R$ 700 milhões durante três anos, com início em 2009.

Uma avaliação dos 18 meses iniciais evidencia progressos determinados pela nova sistemática que merecem ser destacados. Além de ações pontuais, permite desenvolver projetos mais amplos, como a estruturação de centros de transplante de órgãos em Estados que ainda não realizam o procedimento, ampliar ações iniciadas anteriormente com sucesso, como a estratégia de Saúde da Família (PSF), ou, ainda, a aquisição de equipamentos não disponíveis no País.

Tentativas anteriores têm mostrado que objetivos desse porte só podem ser alcançados por meio de estratégias incompatíveis com as sistemáticas filantrópicas anteriores. De fato, projetos dessa amplitude dependem de uma coordenação única com autonomia suficiente para, dentro das balizas traçadas pelo MS, resolver questões inéditas que muitas vezes se definem apenas durante o próprio desenvolvimento dos projetos, valorizando o conceito do poeta sevilhano: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar."

Além disso, muitas vezes o desenvolvimento cultural e tecnológico depende de informações somente disponíveis em diferentes centros de conhecimento. Seria muito difícil reuni-las por meio de iniciativas independentes, principalmente de forma sincrônica. Em alguns casos, como, por exemplo, no desenvolvimento de novos polos de transplante de órgãos, o sincronismo das iniciativas de capacitação é indispensável para atingir uma "massa crítica inicial" suficiente para diminuir os inevitáveis insucessos das curvas de aprendizado. Para o sistema público seria impossível constituir bancos de dados com informações disponíveis apenas em centros de excelência independentes entre si. Um dos projetos em curso inclui a participação de três universidades brasileiras e uma do exterior (Barcelona).

Percebe-se, assim, que a nova sistemática para contratação ou manutenção de caráter filantrópico permite desenvolver projetos com recursos públicos aplicados com graus inéditos de liberdade e autonomia, ao mesmo tempo que permite ao MS um rígido controle baseado na avaliação periódica dos valores aplicados e dos resultados obtidos. Esse binômio liberdade/controle era muito difícil ou mesmo impossível nas sistemáticas anteriores. Além disso, e não menos importante, a criação de "entidades beneficentes de assistência social" permite aproveitar a experiência sedimentada dos hospitais de excelência e, por eles, a dos hospitais universitários para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do SUS.

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, FOI PIONEIRO NO TRANSPLANTE DE FÍGADO NO BRASIL